#2 Judge Not
Uma coisa que me deu que pensar
As perguntas que me suscitou a leitura do texto da Isabel Lucas, no Ípsilon da semana passada, sobre tradução e lugar da fala, e a polémica à volta das traduções do poema spoken word de Amanda Gorman. Fiquei a dar tantas voltas à coisa, que me pus a traduzir o poema. Nem queiram saber.
O artigo do Ípsilon está cheio de testemunhos inteligentes, lúcidos, e abre muito, muito mais, do que fecha, o que para mim é sempre bom sinal. Também contém algumas ideias que me pareceram too much, como a artista e académica Grada Kilomba dizer, a propósito da tradução do seu livro Memórias da Plantação, que só um homem (o tradutor para português) utilizaria o verbo “arrancar” (“uma linguagem masculina, branca e masculina”, segundo Kilomba) para dizer “iniciar”.
Todos estes correctores, para não dizer correctivos, me provocam grande espanto. Acho que Orwell se iria rir muito disto tudo.
Eu percebo que todos escrevemos (e lemos, e traduzimos) a partir de um lugar. E é muito importante esse lugar, se é. Mas mesmo quando se é “o outro do outro”, esse lugar não pode ser liso, fechado. Não é fixo.
Não acredito numa identidade plana. Eu venho de muitos sítios, sou muitas coisas. Não caibo numa caixinha. Eu gosto de poder dizer “iniciar” e “arrancar”. Eu gosto de me pôr no lugar do outro. Acho esse deslocamento importante. Acho que consigo fazê-lo, apesar do privilégio. Não me diminuo. Não me ponho em bicos de pés. Estou no mundo. Abro os olhos. Não digo que seja fácil, ou óbvio. Digo que é possível, desejável. Deslocar-se. Irrita-me a rigidez. Tanta limitação e certeza de tudo. Tantos ortopedistas do pensamento.
A propósito, andei a fazer escavações cá em casa para encontrar esta entrevista ao escultor Thaddeus Mosley publicada no #25 da revista apartamento. Mosley, que é negro, nasceu em 1926 ao pé de Pittsburgh, na Pensilvânia, e este pormenor é importante, porque Mosley nasceu e cresceu num meio blue-collar, mas também perto de um museu, patrocinado pelos Carnegie e provavelmente perto de uma biblioteca (a propósito deste a propósito: um pequeníssimo Jean-Michel Basquiat, fartou-se de papar exposições de mão dada com a mãe, e aos seis anos já era sócio do Brooklyn Museum. Just sayin’).
Diz Mr. Mosley:
“If we go back to the ‘60s and early ‘70s, there was an idea that a black artist must express blackness – these restrictions that to me don’t make any sense. Or they didn’t want white people painting images of African America. There were even people complaining about photographers photographing black people. I said that a good photographer can photograph anything. “
e depois,
“I don’t think anyone should do anything unless they want to. You can paint nothing but black mountains if that’s what you want to do, and I don’t have to like it, but I think that’s the idea of art, particularly if you really believe in freedom. I don’t mean selective freedom for me or my group. It’s not really freedom unless everyone has the same privilege and the same right. But they had all these restrictions. I mean, there were people criticizing Sam (Gilliam) for doing abstraction. ‘Black people shouldn’t be doing that’, which is pure nonsense. That’s like saying white people should only be painting Protestant pictures or Catholic pictures or pictures from Ireland or Greece or wherever they’re from. That’s nonsense”
Já agora, quem não conhecer pode espreitar as esculturas de Thaddeus Mosley aqui e fazer o seu próprio juízo sobre a blackness que delas transpira, entre outras coisas.
Voltando ao movimento, que, contrariando a sua própria natureza, claramente me ficou atravessado. Um carro em princípio arranca (em francês, um carro é feminino! E, elle démarre, imagine-se! Solta amarras! Até tremo ao pensar no que poderá isso significar para determinadas cabecinhas). Ele arranca, no sentido em que se põe em marcha, e não vem mal nenhum ao mundo por isso. E ao volante, até pode estar uma mulher - é bom que esteja - a pisar a fundo no acelerador, de capacete e óculos de aviador, cachecol ao vento, carré também.
Se um carro arranca, cheio de pica, porque não há de arrancar um projecto, uma casa, uma linha?
Eu escrevo “arranca”, e gosto como soa a palavra, e parece que oiço o motor a rugir. E gosto sobretudo da liberdade de a poder usar. E apesar de andar sempre a perder as minhas joias, não vejo a minha feminilidade - nem, já agora, a minha mestiçagem - ameaçada pelo facto de dizer “arranca”. Ou coisas bem piores. Não percebo nada de mecânica. A minha cena são as palavras.
Agora:
Eu sou das que acredita que se devia medir, quantificar. Saber não só quantos escritores, editores, livreiros, tradutores negros existem em Portugal. Quantos podem existir. Mas também quantos ortopedistas, arquitectos, psiquiatras, actores, jornalistas, designers, paisagistas, agricultores, professores. Quantos têm estudos superiores. Quantos vivem nos centros das grandes cidades. Quantos podem dar-se ao luxo de se mudar para o campo. Gostava mesmo de saber. Interessa-me muito, até para perceber de onde venho e para onde vou. Para onde caminhamos todos.
Mas também sou das que penso que não é preciso ser preto (posso?) e gay, para traduzir James Baldwin.
(aí em cima está um trailer do Weekend de JL Godard, filme que me pareceu muito apropriado, porque para além de ter um dos travellings mais memoráveis da história do cinema também mete carros, privilégio, e até a Hermès! Juro que não fiz de propósito, mas isto anda tudo ligado.)
Três coisas que valeram a pena:
Esta especialíssima cover de “Let’s Dance” do M. Ward, que descobri graças ao programa O Azul e A Montanha do Nuno Barão, na rádio quântica:
Isto é importante porque andava a pensar no Bowie e como era imperdoável, falha gravíssima, lá em casa (devia dizer “lá em casas”, porque foram algumas) não se ouvir assim tanto Bowie, e até o comentei com o meu primo Mike, que apesar de ter uma cultura musical muito mais vasta que a minha, ecléctica e diria mesmo imaculada, concordou que de facto era uma lacuna, um vazio que também ele sentia na sua vida. Lá iremos. Amo a letra, já agora. Também veio muito a calhar.
A crónica da Matilde Campilho no Ípsilon desta semana (eu sei, estou muito Y) sobre o ano do nosso confinamento. Triste efeméride, belo texto. Não encontro o link! Este outro, do MEC, sobre kokochas e línguas de bacalhau, está online (para quem tem assinatura), e é uma delícia, como de costume. Se o tivesse lido antes de acabar a tradução em que estive embrenhada, que metia personagens bascos e kokochas, tinha-me ajudado bastante.
O livro do tunisino Ali Duaji, “Périplo pelos Bares do Mediterrâneo e Outras Histórias” que não sei bem porquê me fez pensar em Stefan Zweig. Tem menos bares no Mediterrâneo do que eu esperava. Algum arak. É um olhar de um homem (árabe) sobre o mundo ocidental quando o mundo ocidental achava que era o centro do mundo (o que me fez pensar nos documentários invertidos de Jean Rouch sobre Paris), nos anos 30 do século passado. Só coisas boas. Foi traduzido directamente do árabe, por Hugo Maia (que não sei se é preto, branco, preto e branco, straight, queer, feminista, paternalista, mas sabe árabe (tunisino) e é tradutor). Pareceu-me uma tradução cuidada, cheia de notas envolvidas, mas não enfadonhas. Aprendi coisas. Não sabendo mais nada de árabe para além de Habibi e Inshallah, vocábulos que muito estimo, que gosto de pronunciar, não faço ideia se está bem ou mal traduzido, mas para o caso, isso não interessa. Foi uma leitura fluida, sulcando as águas, veloz. Soube-me muito bem.
E um conto.
(que vem da semana passada)
Agora não havia areia, não havia mar. Também não havia bolas de Berlim com o seu creme escandaloso. Reais ou imaginadas. Se eu penso, existe, se existe, eu posso comê-la.
Se se debruçasse, meio corpo de fora do parapeito da janela, conseguia ver o Tejo.
Agradecia ver o Tejo. Era um risquinho, ao fundo da rua. Sempre era um rio, e corria. Se o vir, existe, se não o vir, existe na mesma. A natureza está-se nas tintas, e é por isso que é o maior refúgio. A natureza é como a vaca que contempla o mundo.
Lá de baixo, a vista era melhor. A rua onde moravam era muito íngreme. Descia, descia, até parecer afundar-se no rio. O rio era fundo, mas não metia medo, como os olhos do outro, no sonho.
Cada três dias, era preciso sair e comprar comida. As casas de agora não estavam preparadas para grandes abastecimentos. A ideia era substituir, não armazenar. A aceleração era linda. O impulso, glorioso. Era preciso consumir, mas sobretudo consumir rapidamente e sem pensar. A ideia de despensa, em princípio conservadora, tornara-se subversiva. Baseava-se na antecipação, na reflexão, no discernimento, na pausa, tudo ideias demasiado racionais para tempos selvagens. Para onde tinham ido as despensas? Em casa dos avós, havia uma divisão inteira da casa consagrada ao armazenamento. E um armário na cozinha, do tecto ao chão, onde o avô guardava as iguarias. A porta era azul clara, com uma moldura azul marinho à volta. Tinha uma pequena maçaneta metálica. Café de várias moagens da Casa Pereira, vinho do Porto, chá preto da melhor proveniência, línguas de gato, frascos de fruta cristalizada, tâmaras maduras, whisky de 12 anos, latas de bolachas de manteiga, e ao fundo, vários cilindros e paralelepípedos contendo conservas. Batalhões de enlatados, muitos com datas ultrapassadas, mas que o avô insistiria em comer sem medo de ficar indisposto ou mesmo gravemente intoxicado, pois deitar fora comida era não só um crime, como uma blasfémia. Em meados do século passado, o avô combatia o desperdício alimentar comendo tudo até ao fim. No início do século passado, uma pandemia arrasava o mundo. No ano de 2020, pulverizavam-se maçanetas.
A extinção das despensas não impedia que muitas pessoas tivessem corrido aos supermercados para se abastecer antes do mundo acabar, e assim sumir-se condignamente. O açambarcamento, uma mutação pandémica da compra por impulso, tinha tomado conta da realidade. A fixação em rolos de papel higiénico era particularmente acentuada. A extinção dos bidés era também uma possibilidade a ter em conta. A carne de vaca fora a primeira a desaparecer das arcas frigoríficas.
Depois o frango, depois o peru, depois o porco, o coelho, o pato, o borrego. Ir ao supermercado transformara-se numa caçada.
Naquele bairro, que antes lhe parecera um gueto sereno e luminoso, por estar no coração da cidade, mas ao mesmo tempo isolado da grande confusão, governado por uma espécie de autossuficiência que permitia que os seus moradores não tivessem de sair daquela meia dúzia de ruas para fazer as suas vidas, ela já estava confinada antes do confinamento.
Supermercado, farmácia, mercearia, jornal, jardim, ginásio, fonte, esplanada, café, tasco e Tejo e tudo, quantos dias podiam passar sem que saísse daquela abençoada e formosa quadrícula? Trabalhava em casa, escrevendo textos como quem frita farturas, virando frangos martelados no teclado, a escola do filho a seis minutos de distância, subir, direita, esquerda, direita, atravessar, direita, as escadinhas deslizando até ao rio, o rio cambiante verde e azul e cinzento denso transparente vaporoso metalizado turvo cristalino e em cima da linha um navio, e correndo ligeiro um veleiro.