#3 Através do vidro
Tenho as mãos a cheirar a limão e a alecrim, pus o borrego a marinar. Antes, no mercado. O alecrim viaja até às minhas narinas, perfura a máscara, ah grande alecrim que atravessas uma KN95 e sais airoso. O cheiro é bom como é bom o limão que espremi para fazer uma limonada, porque é físico. De casca grossa e gominhos transparentes.
Precisamos de sentidos.
É uma evidência.
É uma banalidade.
O limão tão ácido que se torna salgado. Em maior ou menor grau, padecemos todos de fadiga digital. Se uma reunião cansa muita gente, um Zoom cansa muito mais. As crianças, que ficaram órfãs da escola, que o digam. É preciso estar atento a muitas coisas, quadradinhos, delays, microfones mudos ou insurrectos, filtros indomados. No Zoom não prendemos os olhos, lemos com dificuldade as pistas, os gestos.
O mundo desfaz-se em dados. Nós escorremos com ele. A digitalização é a doença.
A pandemia veio mostrar que somos humanos, a nossa pele queima debaixo do sol, somos muito mais físicos do que queremos, cremos.
Estas semanas tive sempre isto presente. As coisas vão-se ligando e divirto-me a fazer constelações. As minhas geometrias do pensamento. Ensaio um poema:
O pé
Do meu filho
Na minha boca
(e sinto-lhe a transparência, como a polpa do limão)
Enquanto reflito sobre estas coisas, o mundo - vivo, pulsante, interligado – vai-me confirmando a sensação. Recebo uma caixa de cartão cheia de objectos delicatessen (uma pedra, um bloco, um pedaço de sabão azul, um mapa, uma vela, umas bolachas com mensagens, uma caneta, um Porto branco a pedir para ser tonificado) que é um convite ao pensamento à reflexão e à criação. Um cadavre exquis.
Penso que por muito que os museus e os teatros e os cinemas disfarcem ou se “reinventem” como agora dizem, não há nada como meter-se numa galeria
num
museu
comer a arte
a aura inteira
a falta que isso me faz
aquilo que um quadro faz quando é visto
não há explicação
é amor a primeira vista,
sempre aquém e além de nós
e aqui a imaginação só não chega.
Vejo o Solaris (em russo, legendado em italiano, strano strano, eu sei, trouxe de uma loja subterrânea na Galeria Vittorio Emanuele) e outra vez: retenho as sensações. As algas, os líquidos, a intimidade, os sons. Vou finalmente dar um passeio e presto mais atenção a tudo. Os chocalhos, GPS arcaicos, os passarinhos, o vento varrendo túneis imaginários.
Depois a minha amiga Re, que morre de saudades da família, manda-me esta frase:
dizem que as saudades deixam o coração destroçado, porque são realmente uma dor física no sangue e nos ossos.
de Lucia Berlin
Que fica ainda mais límpida em inglês porque ela fala de “heartache” e põe um alfinete na dor que sente
they call it heartache because missing someone is an actual physical pain, in your blood and bones.
Agora chove a cântaros lá fora e penso na minha pobre hortense à janela, que não é dos Açores, é Alentejana.
Que hei de fazer,
São águas mil.
Há uma semana pensava nas pessoas. O problema é que há demasiadas pessoas sozinhas. Mesmo as que estão acompanhadas.
Penso,
um livro sabe muito melhor depois de se estar no mundo.
Era Domingo de Páscoa e pensava nestas coisas e depois de comer o borreguinho com os meus filhos (a carne desfazia-se, soltava-se do osso, sem esforço, desapegada) fui para o campo. Estava um dia bonito de Primavera, e debaixo de um grande sobreiro, um grupo de pessoas fazia um piquenique.
Três coisas que valeram a pena
Depois do mar do Guincho, a exposição da fotógrafa Vivian Maier no Centro Cultural de Cascais. O texto do Sérgio B. Gomes, no Público da semana passada é uma belíssima introdução, embora eu não tenha a certeza se Vivian era uma “fotógrafa que se disfarçou de ama”, ou apenas a mulher da máquina de fotografar, que está ali, diluindo-se no fundo, documentando, observando, pestanejando com uma Rolleiflex. Mas também marcando a sua presença, assertiva, reflexa, como nos autorretratos que deixou, espelho dentro de espelho dentro de espelho, montras, máquinas, vidros, desdobrando o olhar até nas sombras, que são reflexos opacos, essenciais.
Este Speak Low da Billie Holiday, meu novo loop:
Os quadros da Caroline Walker, artista escocesa que descobri no Instagram e que adorava ver ao vivo, porque o digital é lindo, mas o digital é uma ficção, e não há museu imaginário que resista à presença física da obra de arte (mesmo que seja uma coisa cultual, como dizia Benjamin, queremos). Caroline Walker, que é uma espécie de Hopper contemporânea, pinta a experiência das mulheres no mundo de hoje, as que conhece intimamente (como a mãe, Janet, nas tarefas domésticas) e as que desconhece intimamente, que vê através do vidro, a trabalhar em trabalhos que ninguém vê, a descansar uma cadeira em interiores luxuosos, muitas vezes em cenas noturnas, sempre distantes e detalhadas, comoventes.
E um conto
(que ficou suspenso há 15 dias)
Iça as velas. Calça as luvas. Máscara cobrindo o rosto como uma odalisca contrariada. Carrega os sacos e agora ela é Ulisses descendo a rua. Sebastião em casa, nariz colado ao vidro da janela que está terminantemente proibido de abrir. A mãe é um pontinho colorido no cimo da rua, depois vai-se aproximando e o coração de Telémaco sossega, passou meia hora e a meia hora é uma eternidade, mete a chave na porta lá em baixo, ouve-lhe os passos, escadas acima, degraus poeirentos, corre para a porta, abre-te sésamo, abraça-lhe as pernas como um tronco, amor, amor, abracinhos não, solta a mãe e soltam-se os sacos, larga os sapatos, troca a roupa, lava as mãos, já cá estou meu lindo e trouxe os teus cereais.
Problemas do primeiro mundo: os teus cereais, o meu amaciador, o nosso pão sem glúten, as vossas férias em Bali. As minhas também, logo que consiga mandar-me daqui para fora, pensa. Ou não. Bali não está nos seus planos. Uma travessia, sim. Um reino muito, muito distante. Um mar muito, muito azul. Antes, Sebastião vai crescer e fazer-se homem. Um homem bom. É para isso que está ali, armada com o seu sorriso, o seu cheiro, a sua pele doce, o seu colo macio. É para isso que afasta, como pode, os pensamentos sombrios. Só que. Os olhos esventrados. Os beiços obscenos. Os murros na mesa. As multidões esmagando-se em êxodos invertidos. As mãos sem água. As casas sem tecto. As praças vazias. A porcaria. A solidão. As bocas vazias. A falta de ar. Os falsos problemas. As falsas notícias. Se o vírus não te matar, mata-te a fome. Se o vírus não te comer, come-lo tu. E a seguir ingeres quantidades maciças de detergente e fica tudo bem. Lava as mãos, esfrega-as bem durante 20 segundos, entre os dedos também, palmas e costas e pontas e pulsos, os interstícios, as luas nas unhas. Não há água. E depois? Há as ruas, os monumentos, as estações desoladas, os prédios, as luzes, as aglomerações. Perto, muito perto, todos iguais perante a ameaça. Só que não. O vírus é bastante selectivo, dá-se melhor em determinados ambientes. Olá minorias, olá miseráveis, alô favela, alô realeza, yo, yo, yo, isto não bate a todos por igual.
Nessas alturas, pensava que estariam mais protegidos numa ilha. A imunidade de grupo era ainda um horizonte demasiado distante, era preciso que 60% da população tivesse anticorpos. Vírus novo, vida nova. Nunca se vira nada assim. Espera. Bocaccio, Decameron. A peste, a peste pestilenta. Antes, como agora, os ricos regressavam às suas casas no campo, rodeadas de ciprestes toscanos. Os ciprestes morrem de pé. Os homens morrem de todas as maneiras. Mas numa ilha podia ser que estivessem mais seguros. Seria aquele bairro um ilhéu?
Não sabia, e agora era preciso tratar do jantar. Uma coisa simples, uma bolognese por exemplo, não deixes para amanhã o que podes comer hoje, e o Sebastião ia adorar mastigar aquela vaquinha libertadora de metano. Spaghetti al dente. Flocos de parmesão leves como a neve. Depois comeriam gelado, bolas perfeitas, macias e frias. Depois leriam uma história ou duas, ele ia dormir e ela podia recuperar um bocado do trabalho em atraso. Ou arrumar os livros por cores.
Deitados na cama, olham as estrelas e os raros aviões que cruzam o céu. São estrelas cadentes, intermitentes, na horizontal. A rua está em silêncio. Há um ano seria quase Junho e isto seria um frenesim de santos e balões e sardinhas assadas. E manjericos. Os jacarandás já começaram a explodir e a cidade está linda, toda roxa e peganhenta. No jardim das traseiras, o jasmim sobe até ao céu, as palmeiras ondeiam na noite, também elas roxas, também elas esguias como girafas.
Estão os dois ali, sobre a colcha de algodão, ambos em posição de Shavasana, que em sânscrito significa a posição do morto, cadáver liberto de tudo, a entrega total. Que difícil o abandono, pensa. Que difícil estar parada, fazer tudo sem fazer rigorosamente nada. Que difícil sossegar e viver, mesmo depois de uma paragem forçada, uma travagem brusca como esta. Diz ao filho para estender os braços ao lado do tronco, abrir as pernas ligeiramente, formando um triângulo desprendido e solto. Nenhuma parte do corpo toca outra parte do corpo. Sentir é morrer.
- Não podes tocar em nada, Sebastião, só tens de ficar quieto e deixar o corpo pesar, e depois vais ver o que acontece.
Um tempo. As folhas da palmeira agitam-se levemente. Depois ele diz:
- Quando fica pesado, fica leve.
- Isso.
- É como a neve.
Estão à cata de uma estrela, como é evidente. O problema é que quando procuramos um desejo ele tende a não aparecer, quanto mais concretizar-se. Há uma resistência. Muito melhor seria aceitar a vida como uma deriva abençoada, navegar ao sabor da corrente sem grandes fricções. Mas agora há demasiado atrito, pensa. Se quisesse flâner, só o poderia fazer entre a sala a e cozinha. E daí para o meu quarto, o quarto dele. Não há arcadas em 80 metros quadrados. Mas 80 metros quadrados são muitos metros quadrados. No Japão as pessoas vivem em espaços ínfimos. Um amigo que chegue pode ficar a dormir entre a bancada da cozinha e a mesa de refeições. Num tatami, isso sim. Não sabe bem como estará a situação no Japão. Terá baixado a taxa de suicídios? Que fácil seria agora um harakiri. Milhões de harakiris sem máscara.
- Se fosses um homem, o que serias mãe?
Acorda, mãe. Acorda. “Para viajar, basta existir”. Ela estica os braços acima da cabeça. Estica o corpo todo, tensão, relaxamento.
- Um marinheiro.