#4 Where's Wei Wei
Uma das coisas que se ganha mal se chega ao Alentejo é uma data de vizinhos. É automático.
Não é preciso fazer nada.
Não tocam à porta. Não vivem no 5º esquerdo. Não se lhes ouvem os passos.
Não fumam cigarros pachorrentos à janela. Não correm os estores do prédio da frente se acaso estiverem mais ariscos.
Não vivem no prédio da frente.
Na verdade, nem é preciso que vivam na mesma rua, os vizinhos.
Aqui onde vivo, toda a gente é vizinha ou vizinho de toda a gente.
E isso é bom.
Eu própria sou vizinha de centenas de pessoas que não conheço.
Dou-me conta no Intermarché. Na bomba de gasolina.
Vizinha.
Costumo dizer que aqui encontrei um ninho, grande colo. Há uma rede invisível que me sustém. Esta terra é um amparo. Mesmo quando caminho hesitante, como agora, sei que não estou sozinha. E não há nada de lamechas nisto.
Este território tem uma coluna, vértebras, corpo.
Estou-lhe infinitamente agradecida por me ter deixado repousar encostada no seu dorso.
Como escreveu Virginia Woolf em Orlando:
He sighed profoundly, and flung himself - there was a passion in his movements which deserves the word - on the earth at the foot of the oak tree. He loved, beneath all this summer transiency, to feel the earth's spine beneath him;
Esta terra é um ninho e não acho que isto se deva ao facto de ser uma cidade pequena. Já vivi em outros sítios pequenos, em outras partes do mundo, e nunca senti nada assim.
O Alentejo é isto tudo: imenso e reservado. contido e generoso.
Rotulado com a ideia de preguiça, Ele responde:
Tempo é vagar.
E ajeita o boné.
E descobre, antes de tempo, as virtudes do slow living.
Isto parece um slogan barato, mas é mesmo assim: o Alentejo é muito à frente. Está cá tudo. Há muito tempo, por muito tempo.
O Alentejo é tempo antes do tempo de outro tempo.
É do contra e agradece-se. Tem memória, não fica lá.
É de natureza contemplativa e estas duas palavras - natureza, contemplativa- são importantes. E a forma como estão ligadas também.
No meio desta revigorante pasmaceira, recebo uma mensagem de um amigo de Lisboa. Envia-me uma fotografia da T Magazine (publicação que muito estimo) que mostra o artista chinês Ai Wei Wei ronronando, com os seus gatos, em cima de um pedregulho Alentejano. Podia ser um menir. A legenda explica num tom Attenboroughiano:
“AI WEIWEI, artist, 63, with Shadow (left), 10 months, and Yellow, 1. Photographed at their home in Montemor-o-Novo, Portugal, on Feb. 22, 2021.”
(Shadow e Yellow são os felinos)
Eu pasmo. Então o Ai Wei Wei é meu vizinho e ninguém me avisou?
Ai Wei Wei é uma star, claro. Espertíssimo. Tem sempre coisas interessantes para dizer. É o tipo de pessoa que apetece ficar a ouvir, sem dizer nada.
Ai Wei Wei fez aquele pavilhão lindíssimo de cortiça na Serpentine com os Herzog & de Meuron. E encheu o Turbine Hall de sementes de porcelana, e desconfio que até os espanhóis, loucos por pipas, entraram mudos e saíram calados.
Ai Wei Wei não perde oportunidade de pôr o dedo na ferida:
When I was growing up in Shihezi, China, in the 1960s, you didn’t see families with pets, because of course communism is against private property, and any kind of compassion back then was deemed questionable. Animals were only valued as tools for productivity, as was the case with donkeys and horses, or for their meat. My mom’s generation also tends to think that animals are dirty. Communism is very concerned with cleanliness — you have to be spiritually clean, physically clean — and so even a little bit of animal hair somewhere is unacceptable.
Mesmo quando fala de gatos.
Mesmo quando já está longe disso tudo e escolheu a vida entre as oliveiras.
No meio de
cromeleques alinhados com as estrelas,
deambulando entre as luzes e sombras dos
sobreiros desinteressados.
Ai Wei Wei não é propriamente uma figura que se confunda com a paisagem. Não sei como será ao vivo. Nas imagens é solene como uma pedra, robusto como um sobreiro. E tem uma leveza inexplicável. Veste-se frequentemente de azul.
Contam-me muitas coisas sobre Ai Wei Wei. Outra das características das pequenas cidades é que as notícias se espalham como fogo no mato. Para quem as queira ouvir, claro. A quem lhe interesse.
(A mim, Ai Wei Wei interessa-me. Pensamos convidá-lo para um tour de bicicleta. Não há velodrome, há ecopista. Marco no mapa o monte onde vive. Vou buscar os binóculos. Penso em levar numa rede para borboletas. A camisa de Ai Wei Wei é da cor da tinta permanente que usava na minha juventude).
3 coisas que valeram a pena
1. Vi com delay o programa de Bruno Nogueira Princípio. Meio. Fim. O programa é fora. Há actores bons (Rita Cabaço, Nuno Lopes). A música é um mimo. Não estive sempre ligada, apesar da televisão estar sempre acesa. Eu sentia-me como uma lâmpada intermitente. Tenho consciência que devo ser das poucas, mas tive pena de não ouvir a história que Filipe Melo ia contar sobre o conto de Cortázar. Foi censurada, o som ficou em off, foi lindo. Também eu me sinto muitas vezes como o Filipe Melo com conversas sobre literatura que não interessam a ninguém.
Para mim, o melhor do programa foi o cameo (?) de Kalaf Epalanga, “o gajo negro que nunca se vê à mesa de um jantar de amigos” em Portugal. Também eu me fiz muitas vezes essa pergunta. A aparição de Kalaf é isso: uma aparição, que naturalmente me fez pensar em muitas desaparições neste país, e também no Wes Anderson e no Steve Zissou e não foi só por causa do gorro encarnado. Importante notar que na cena final, Kalaf fica de fora, em arrière-plan desfocado, enquanto os outros cantam E depois do Adeus à volta da fogueira. Kalaf é o gajo mais cool do planeta, é verdade. Ele simplesmente é. Sem esforço.
Não há nada perfeito e este programa é perfeito a não ser perfeito. Agora, um programa de televisão que acaba com o grito “25 de Abril, sempre!” é uma coisa muito fixe. Hoje à noite há mais.
Ainda em modo covers (isto ainda vira secção) e falando de gorros encarnados e vidas aquáticas, este Starman celeste do Seu Jorge:
Este artigo no Guardian sobre brain fog pandémico, e como a ciência e a psicanálise explicam aquilo que andamos a sentir por andarmos todos desligados. O cérebro precisa de estímulos e a memória de dias desiguais.
E um conto
(a quarta parte de Nina, que para quem só chegou agora, começa lá atrás)
Nina corta as ondas suave, numa solenidade estranha, feita de soltura e ritmo. Os dias no mar são longos e leves, longos e leves. O tempo tem mais tempo e não é preciso fazê-lo render, basta aprender a navegá-lo. Há seis dias que não vê terra, e poderia ter outros seis pela frente, e mais seis, e seis vezes seis trinta e seis, e Joan continuaria naquele sossego doce, a vida tranquila.
Turnos de quatro horas não são a coisa mais doce, sobretudo quando o mar está agitado como uma mulher caprichosa. Ou um homem impaciente. Ou uma mulher impaciente e um homem caprichoso. O mar é fluido, o mar agita-se e nele todas as coisas estão suspensas, avançando. O mar pode ser um homem, mas também uma mulher, como acontece em algumas línguas latinas. Em francês, por exemplo, é sempre uma fêmea. Em castelhano é um macho que nas mãos dos marinheiros e pescadores se transforma numa mulher: la mar. Em inglês os navios têm género, e são sempre femininos. Aquele veleiro era certamente uma mulher, Nina, Nin, tantos nomes e seria sempre uma menina.
Há seis dias que não avista terra, mas noutras travessias podiam passar semanas sem que visse sequer outros barcos. No mar, o isolamento é um estado natural. O confinamento tem horizontes mais vastos, é tudo. À volta azul, azul, azul. Do céu à superfície líquida que se agita, branco, cinzento azul. A abóbada celeste caindo-nos no colo, negro, prata, luz, cintila.
No mar, os dias são sempre ou quase sempre iguais. Ao princípio, fora difícil habituar-se a tamanha placidez. Onde estão as aventuras? pensava Joan. As peripécias, os imprevistos? Um atum generoso, pescado à linha, espirrando sangue, podia ser um acontecimento. A barbatana de um cachalote recortada contra o céu azul antes de mergulhar de novo podia ser um acontecimento. Uma avaria no motor sem solução até ao próximo porto era certamente um acontecimento.