#6 As Horas
Cheguei tarde à igreja e bati com o nariz na porta.
Ainda espreitei pelo buraco da fechadura, e do outro lado
Nada.
Uns trastes disformes ali dispostos, enquanto eu suspirava por um pouco de música.
Isto aconteceu na sexta-feira, depois de uma semana intensa de trabalho, que ultrapassou a brincar as 40 horas alegremente conquistadas naquele belo mês de Maio de 1968. Dias sem fôlego, que deixaram o meu cérebro mais ou menos com este aspecto:
Resolvi fazer esta captura de ecrã do meu desktop porque dá uma ideia bastante clara do estado da nação. Esta pequenina que habito, quero dizer. O meu corpo. E a mente que desejaria ser observada por alguma coisa que não pensa, apenas vê.
Este cansaço, esta correria, esta atropelação que atrofia o pensamento. Acho que é um sentimento generalizado, que muitos partilhamos. Será um sentimento colectivo?
Ainda.
São 18h25 e largo a secretária, escovo o cabelo, lavo os dentes, animo as pestanas com um rímel súbito, enfio o casaco e lá vou eu, pela estrada que serpenteia, albatroz, borboleta, cortando a tarde, papando léguas, direcção Évora.
Tenho meia hora para me pôr dentro da muralha porque o concerto começa às sete em ponto, na igreja de São Vicente. Um solo de violoncelo com cabos eléctricos e explorações sonoras do espaço, pelo Ricardo Jacinto, uma pessoa que muito prezo, músico arquitecto artista cujo percurso tão coerente e original evidentemente me toca.
Às sete em ponto estou na igreja e dou com o nariz na porta. Não é a primeira vez que me atraso para uma igreja, só que agora,
Já não vou de branco
Soltou-se o véu
Já não levo
Coisa nova coisa velha coisa azul coisa dada coisa emprestada
Nem se arrastam caudas pelas pedras,
Que a hora de um casamento não é nariz de santo, mas um concerto sim, como aprendi por aqui, com a minha amiga Marisa, noutra ocasião:
“Combinamos pelas 9, 9 e meia, não é nariz de santo”.
Nariz de quê?
Nariz de santo
Eu pasmo e procuro o sentido aquela fisiologia toda a transpirar pelas palavras,
Nariz de santo, que é como quem diz, direitinho, literal, exactamente, com todo o rigor.
Esclarece
Esclarecida, percebo que, tratando-se de um sábado, a hora da combinação não tem porque ser traçada a régua e esquadro.
Um ‘cadinho para a esquerda
Um ‘cadinho para a direita
Não é nariz de santo, enfim.
Fecho parêntesis. Volto a Évora, ao concerto falhado, estonteada eu, implacáveis os ponteiros, e ponho-me em movimento. Não há música, há andamento. Vou buscar o jornal, sento-me à mesa da esplanada, peço uma focaccia, um copo de vinho natural e turvo, redondinho não, cheio de esquinas, do Dão, e um tártaro com couve lombarda estaladiça.
Não se está mal. O jornal é uma tristeza. Évora é uma alegria. A vacina é para quem pode. A classe média portuguesa é capaz de ser uma ficção. O céu está cor de rosa e as nuvens são belíssimos farrapos. Évora fica num ponto bastante alto. Tanto Alentejo à minha frente, tenho duas horas só para mim e decido descronometrá-las.
Vou andando pela cidade, por lugares cujos nomes desconheço, mas que sei muito bem onde ficam. Não preciso dos nomes das praças ou edifícios. Embora esteja atenta, por puro deleite, não necessariamente para me orientar. Nomes como este:
Travessa dos Joãozinhos
Felizmente há pessoas nas esplanadas nas mesas nos cafés. Felizmente estes lugares estão espaçados. Não se amontoam. Não são redundantes, não criam monotonias de mesas de metal. Mas as praças, as ruas, os jardins, estão praticamente vazios aquela hora, já perto das nove. E esse vazio, estranhamente, não tem nada de desolador.
Instalou-se um belo silêncio, é isso.
Suspensa, rebolo-me nele,
E descubro que aquela tarde é um destino e uma resposta
aos dias que não esperam,
que nos passam por cima como vagalhões,
aos instantes em que achamos que não podemos esperar
para satisfazer um desejo
mesmo sabendo que é característica sua extinguir-se assim que se consuma,
consome.
Três coisas que valeram a pena
1. Bem sei que o filme não é de agora - aqui as coisas chegam tarde e a boas horas, o que agradeço - mas esta semana voltei ao cinema e vi Adam, da marroquina Maryam Touzani. O filme é poderoso e intensamente feminino. E não é só pela circunstância de ter sido feito por uma equipa onde as mulheres estão em maioria (não as contei, mas quero crer que sim, o genérico tinha muitas, das actrizes protagonistas a directrices e assistantes). Estou a escrever sem ter lido nada sobre o filme, a não ser que passou em Cannes na secção Un Certain Regard. E este é certamente um olhar particular: um olhar que parece vir de dentro, mas que mantém as distâncias, um olhar frontal, mas não exactamente cru (há demasiada suavidade, os planos são pausados, aproximam-se sem serem invasivos, detêm-se e detalham, cúmplices), sobre o que significa ser mulher (e a pluralidade de significados). O filme passa-se em Marrocos, e não tendo ilusões sobre a diferença entre “o que significa ser mulher” em Marrocos e aqui, e sobre a diversidade de significados de “ser mulher” em cada uma das sociedades, o mais interessante de Adam, parece-me, é a maneira como encara e entretece alguns temas que não são só de Marrocos, mas do mundo inteiro. O corpo, os papéis de género, a sensualidade, a maternidade, o abafamento, a libertação, o nascimento, a morte, e também a forma como as mulheres, estejam onde estiverem, são sempre as guardiãs da intimidade, de coisas impronunciáveis, que não se escrevem, mas se transmitem. O filme vai-se abrindo pouco a pouco e em crescendo e os últimos minutos são de formigueiro existencial. Desconfio sempre dos filmes que me fazem chorar, mas outra vez, não pude fazer nada. Corriam-me as lágrimas. Agitava-me na cadeira enquanto sustinha a respiração. Um bocadinho mais e o filme ressuscita reflexos de oxitocina numa perimenopáusica. Gostaria de saber o que provoca nos homens. Nas mulheres que nunca tiveram filhos e não por isso são menos mulheres, também.
2. Em modo arabique (eu amo) e porque neste filme também há uma relação especial com a música árabe (em cassettes), este Dastan Ensemble:
3. O livro que comecei finalmente a ler, “O Instituto para o Acerto de Relógios” (Maldoror), do turco Ahmet Hamdi Tanpinar. Declaro o meu crush instantâneo por Hayri Irdal, o anti-herói e narrador desta história cómica sobre a modernização da Turquia no início do século XX, e o embate Oriente/Ocidente. Os textos foram inicialmente publicados em fascículos num jornal, e compilados em livro em 1962, ano em que o escritor morreu. O livro, à volta de uma organização cuja missão é acertar e fiscalizar todos os relógios da Turquia, multando quem está atrasado ou adiantado, é uma sátira de uma sociedade em transição (curiosamente, palavra muito na moda nos dias de hoje) e parte de um facto histórico: a adopção do calendário gregoriano na Turquia em 1926, acompanhada, como é lógico, da necessidade de acertar o passo com o “progresso” e a produtividade da sociedade ocidental. Dá que pensar. Uma dentadinha nesta delícia:
“Todos sabemos que um relógio só pode estar adiantado ou atrasado. Não existe terceira opção. É um axioma tão comummente aceite como a impossibilidade de um acerto exacto; isto, claro, partindo do princípio de que o relógio não está simplesmente parado. Mas neste caso a questão torna-se mais pessoal.”
E a melhor frase do Público de sexta-feira, sobre linguados (o peixe), do Miguel Esteves Cardoso, para variar:
“Ora o mundo dos linguados está cheio de confusões, mas uma das poucas certezas é que o melhor linguado, aquele que podemos chamar um linguado de luxo, é o Solea solea. Regra geral, quando Lineu repete um nome, é bom sinal”.
Para todos: tenho recebido muitas mensagens e reacções a esta Promenade, e fico muito contente que vos chegue assim. Esse era é o objectivo: chegar aí, levar-vos alguma coisa boa, e ir criando uma comunidade de passeantes. Os comentários algures aí em baixo estão abertos. Escrevam, perguntem e proponham. Partilhem com dois ou três amigos que eventualmente possam gostar de a ler também, e crescemos. Mas o que queria mesmo dizer: estas “três coisas que valeram a pena” são sempre muito pessoais, não tenho a pretensão de que sejam recomendações. São, isso sim, sensações!
E um conto
(que escrevi para um projecto da Renata Bueno, que ainda se está a cozinhar, mas que me pareceu apropriado para o tema.)
Francisco
Fran, Fran, Fran sai de casa pela fresca, caminhando leve entre os ciprestes esguios como lanças.
Não leva sandálias.
Se as levasse, talvez uma pedrinha se soltasse, talvez se infiltrasse entre os dedos macios e húmidos, talvez deixasse de rolar, pedrinha, e se alojasse ali, naquele breve e tenro segredo.
Gio, Gio, Gio, chegando a casa no momento em que o céu se tinge de púrpura, rosa, azul, azul rosado, cinza, chumbo, pomba. Deslizando ainda para um súbito laranja de algodão. Depois se esfuma.
Giovanni Francesco, saindo-chegando no crepúsculo repetido, indefinido, lusco-fusco, fusco-lusco. Onde adormece o dia e começa a noite, onde desmaia a noite e rebenta o dia?
Francesco não sabe. Ninguém o espera. Ninguém lhe deixará o leito quente para o dia que desponta.
Dentro do palácio um corredor. Ala, porta, quarto, cama. Nela esticados, lençóis fresquíssimos, brancos que brilham, duros que cortam só de olhar. Francisco avança ligeirinho, como um pássaro acabado de aterrar. Ainda as asas se agitam e já sente o chão, de grandes lajes cinzentas e polidas, bem frio debaixo dos pés. As ondulações das pedras, sente-as. Em que momento largou os botins? Terá por acaso pensado que correria melhor assim? Terão voado pelo ar, desenhando piruetas pelo céu estrelado? Em todo o caso, não eram sandálias, não. Ainda não.
Mete-se na cama. Tem a cabeça atordoada. Cheia de histórias, vozes, misteriosos vapores. Os frescos no tecto do quarto rodopiam, correm velozes gargalhadas. No corpo ainda ressoa o tilintar dos copos, canecas em choque, tanta suculência.
Francesco ama a vida, os prazeres. Romances de cavalaria. Muita poesia.
Nos sonhos, desembainha a espada e logo lhe caem sobre os ombros tremendas glórias, como chuva. Mantos feitos de sedosos cabelos.
Tanta extravagância não lhe caiu do chão. O pai, mercador de finos tecidos. A mãe, uma francesa de rara beleza. É daí que lhe vem o nome, Francesco, o francês. É daí que lhe vem o caminho.
Perdido nas nuvens, paisagens distantes, um cavaleiro de boa natureza, Francesco nasceu riquinho e não quis saber.
(Cale-se pai. Afasta de mim.)
Aquela cabecinha ainda lhe iria pregar algumas partidas. Tantas horas enfiada nos livros, que outra coisa se podia esperar?
Podia ter dado em Quixote, mil Dulcineias, moinhos, gigantes, penicos na cabeça. Lá dentro, no seu íntimo, talvez nunca tivesse sido outra coisa.
(Quando o pai lhe puxou pelas vestes, ele despiu-se.)
Francesco, de Assisi, é bem italiano, mas ele vem carregadinho de karma, como se tivesse nascido nos Himalaias. Ele veio para sair de onde veio.
Por isso deixou a roupa ali nos pés do velho e saiu. A pele é o mais profundo no homem, já se sabe. Vão-se as penas, ficam os patos.
(Largou e não olhou para trás.)
Primeiro, ouvia gargalhadas. As vozes dos amigos, cheias de cerveja. Próximas como reflexos, sacudindo das barbas a fresca espuma. Depois outras vozes mais altas, longínquas.
E Francesco foi atrás, beijou a terra e subiu.
Um dia, foi ver o Papa. Voltou irado, desiludido, e pôs-se a pregar. Foi até ao topo do monte, e no topo do monte viu um castelo. Havia muita gente, homens e mulheres, mas foram as andorinhas, em alegre algaraviada, as primeiras a calar-se. Dobraram as asas, recolheram as cabeças. No meio do sossego, os seus olhinhos brilhantes, irrequietos e rasos, fixaram-se nas sandálias de Francesco.