#7 Quem semeia ventos
Tenho o computador ao colo. A cabeça do meu filho a espreitar-me por cima do ombro. Estou prestes a carregar no botãozinho mágico para encomendar dois livros que não podem esperar, não podem absolutamente esperar, e o pequeno Beethoven (cultiva a farta cabeleira, o skater) dispara-me “Aiiii os capitalistas”. Está no gozo, evidentemente. “Aiiiii o jeff bezos” (e pronuncia jeff bezos à portuguesa, arrastando, exagerando os “é”, transformando o “o” em “u”, como se apregoasse na praça).
Talvez não esteja a gozar. Está mesmo a falar a sério a criatura, a pôr o dedo na ferida, a desmascarar a mãe, apanhada em flagrante a comprar literatura inglesa na Amazon à socapa.
Podia ser pior. Podia estar a comprar uns ténis fabricados no Bangladesh. Só que, bem vistas as coisas, o princípio é o mesmo. Livros, ténis, escola pública, SNS. Onde ficamos?
Ficamos na parte em que cedi à tentação e não fui capaz de travar o impulso e esperar (o tempo, o tempo) e encomendar os livros noutro sítio. Mais lento. Mais próximo. Mais certo.
Ao jantar, uma mulher fala com os filhos sobre a Amazon, e os ciganos, e os migrantes, e os professores, e o fundamental direito feminino de dizer palavrões, e o Coiso, e os marialvas, e Israel e a Palestina, e depois catrapumpumpum bate-lhe tudo na cara. Bem-feita.
Quem semeia ventos, colhe liberdades.
Ao que vamos. Ontem fui finalmente ver Nomadland, um dos filmes do ano, que ganhou Veneza, e os óscares e tudo. Levei o mais velho, e incluí a ida ao cinema na categoria (magra) das obrigações de “programas em família”.
Muitas pessoas que muito quero me diziam muito bem do filme. São muitos muitos. As expectativas eram altas e o filme é indiscutivelmente bom. Frances McDormand está no auge. A luz é linda. A opção da realizadora Chloé Zhao pela chamada docuficção (Que ficção não documenta, que documentário não é ficção?), cruzando actores com pessoas reais a fazerem delas mesmas corre muito bem. Como corre bem, bem vistas as coisas, o facto de o filme não ser refém de uma narrativa propriamente dita, cheia de nós e picos de tensão, e simplesmente correr, pacificamente, como road movie que é, cheio de entardeceres esplendorosos e imensos desertos.
Se este filme for um filme sobre a liberdade, e a excentricidade de uma existência nómada, então está tudo bem. Fern, a personagem interpretada por McDormand, é tenaz e incorruptível. Ela continua on the road, para a frente, mesmo quando tem que voltar atrás para resolver o passado, como a heroína de um western perfeito. E está tudo bem.
Só que, fora desta personagem, o que acontece?
Na visão de Zhao, aparentemente nada de grande interesse.
Só isso explica que o filme evite a política. Só que não é possível filmar os armazéns da Amazon, como Zhao faz, e não colocar nenhuma questão sobre o que lá se passa. Ou talvez até seja, como se vê.
Como é que se entra na barriga da baleia sem acender uma vela?
Se “lavar os dentes é político”, como é que um filme que se debruça sobre o que é “sobreviver na América” quando a reforma não chega para uma casa e se é empurrado para uma vida nómada depois dos 60, de biscate em biscate, não se interroga sobre a questão sistémica?
Não era preciso deixar respostas. Mas uma pergunta ou outra, mmm?
O filme deixa bem claro que Fern é uma nómada pura. Ela continua na estrada porque quer. Não lhe faltam oportunidades para se fixar. Ela recusa o sedentarismo até ao despojamento final. A liberdade sobrepõe-se sempre. A natureza é poderosa. A independência é gloriosa, sobretudo se for a conquista de uma mulher. Isso é muito bonito. Mas não basta. A liberdade implica escolha. Abrindo os olhos, vemos que para muitas pessoas, em Nomadland e nas outras lands espalhadas pelo mundo, a liberdade ainda é uma ficção.
Três coisas que valeram a pena:
1. Um cientista que pensa como um filósofo, um cirurgião que ama a poesia, um pintor apaixonado pela matemática. Haverá coisa mais bonita? Haverá, com certeza, mas sempre que presencio um momento em que estes extremos-não-extremos se tocam, emociono-me. A conferência A Europa Imaginada: Beleza, Humanidade, Sustentabilidade e Ciência, uma iniciativa promovida pela candidatura de Évora a Capital Europeia da Cultura 2027, foi um desses momentos. A iniciativa juntou seis “Prémio Pessoa” que estiveram à conversa sobre o novo desígnio europeu. Especialmente inspiradoras, para mim, as intervenções de Miguel Bastos Araújo e Tiago Rodrigues. É preciso esperar para os ouvir. Sou suspeita porque sou por esta candidatura, que não é só de Évora, é do Alentejo inteiro. Esta terra é a terra que eu escolhi. Devo-lhe muitos dias de paz. E abraçando este presente e este território que nunca mais acaba (material e imaterialmente, o Alentejo é um terço de Portugal), não fico por aqui. O nosso futuro comum: agir local, pensar global, agir global, pensar global. Podem ver online aqui.
2. A propósito da Palestina, faço minhas as imagens do artista e designer japonês Sho Shibuya. Shibuya chegou a Nova Iorque em 2011 sem falar uma palavra de inglês, fundou o estúdio Placeholder e, entre outras coisas, criou a série “sunrises from a small window”, que começou a pintar durante o lockdown, e que reimagina as capas do The New York Times contrariando o confinamento e a pandemia do medo instalada na imprensa.
3. As boas vibes do som de Luca Argel, brasileiro radicado no Porto que felizmente não perdeu o sotaque. Vai Brasil e Bibó Porto!:
E um conto
(mais uma história, enfim.)
Um brinco de brilhantes viaja da orelha da minha bisavó até ao meu dedo. O furo fazia um risco, no lóbulo alisado pelos anos. Claro que a viagem só é possível porque pelo caminho o brinco se transforma num anel. Um anel é um círculo, e um círculo é um infinito. Mas um anel é uma linha, uma linhagem, um pêndulo. Um furo transformado em fio. De mãe para filha, um fio numa agulha que cose e descose e nos mantém unidas sem sabermos nem como nem porquê. Um dedo num dedal prateado. Um peixe.
E eu, que nem sei bordar, coso.
O que recebi, o que recusei, o que aprendi, o que inventei.
Este anel, herdei-o da minha avó. O brinco brinca agora nos meus dedos.
Mas não foi sempre assim.
Durante muitos anos, foi a única joia que guardei. Não tinha hipótese. Todas as outras se esfumaram, se extinguiram, escorregaram por fendas invisíveis em chãos que pisei e esqueci.
Mas este. Precioso este. De todos o mais brilhante. Rodo-o gentilmente no meu dedo e medito no sorriso da minha avó. Cheio de faíscas bondosas, brancas, brancas, brancas.
Um dia, pousei o anel e nunca mais o vi. Durante meses, senti a sua falta, mas aceitei. Vão-se os anéis, ficam os dedos. E as ternas faíscas, os sorrisos, os embalos, os cheiros, as festas, as histórias, os braços, os abraços.
Um dia, o Sol levanta-se particularmente bem-disposto. Visto uma saia a condizer e vou à praça. Percorro as bancas, trago espinafres e rabanetes, espargos do campo, cebolas transparentes, as primeiras cerejas. Paro diante das bancas do peixe, varro-as devagarinho. O gelo, as escamas, o brilho frio que não fere. Enquanto inspeciono, à distância possível, o estado do olho do peixe (quer-se vivo, em exaltação) levo a mão ao bolso e plim, dá-se o encontro. Eu digo “plim” porque o som tem brilho e o brilho tem som. Na ponta dos meus dedos, no fundo do bolso, o anel da minha avó, à minha espera o tempo todo. Bem lá atrás, na minha cabeça, desfila repentina a história do peixe que levava uma joia na barriga, uma joia que regressa ao ponto de partida depois de uma longa viagem pelo mar. De boca em boca, de barriga em barriga. O fio preso na ponta do anzol.
E então, agradecida, no meio da praça barulhenta realizo como é bom voltar a casa.