#8 A viagem
Está um lindo dia, apesar de tudo. Voltou o calor. Hoje Fernandinho faria anos (Lisboa, 13 de Junho de 1888) e outro Santo, chamado António, espalharia manjericos pela cidade, realizando matches perfeitos ou improváveis, ou melhor ainda, ambas as coisas duma só vez.
Mas Fernandinho morreu e os santos populares hibernam agora.
Os manjericos continuam verdes e cheirosos. Não consta que tenham sido desinfectados, apesar de toda a gente lhes tocar. Se assim fosse, de imediato murchariam (penso em narizes e nas mãos com que se cheiram manjericos). As sardinhas ainda não estão no ponto. Nunca estão em Junho, diz quem sabe. Mesmo magrinhas, brilham sardinhas azuis e de prata.
Depois de dias afastada- atarefada, volto ao passeio e ponho-me à procura de uma frase de Pessoa, sobre a impossibilidade de escrever e viver ao mesmo tempo. Não a encontro. Nunca a encontro, e ponho-me a pensar se terá sido fantasia minha. Então mergulho no “Desassossego” e vou lá buscar esta claridade toda:
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida.
A frase saltou-me da página e eu respondi: é isto, é isto mesmo.
A literatura move-se a imaginação. A vida, a sensações.
E neste movimento indeciso avanço tudo o que posso.
Uma imaginação que sente, uma sensação que imagina.
(I never said it would be easy, I only said it would be worth it)
O calor desceu à terra e a minha rua, onde as obras duram há meses, parece um teatro de guerra depois da batalha. A calçada portuguesa, incipiente, vai galgando a estrada, pedra ante pedra. Os passeios são uma aberração, mas o que se há de fazer. Acabaram-se as crateras debaixo dos meus olhos (águas, esgotos, fibras ópticas escancaradas) e pouco a pouco tudo escoa para a normalidade.
Mas antes: no Alentejo o Sol arde. A pele não nos separa do mundo, atira-nos para ele. O vento é visível. Na ondulação dos campos subitamente dourados, na poeira que agora se levanta no meio da cidade de pantanas. Se fechar os olhos e sentir o vento quente, se os abrir para engolir o poente vermelho e roxo, se molhar as pálpebras na luz clara que cai sobre as casas, pode ser que de repente aconteça. Num tapete que voa lá vou e só aterro nas Arábias.
3 coisas que valeram a pena
1. A peça Reindeer Age #1 de Bernardo Chatillon, que vi no festival da PT21, aqui n’O Espaço do Tempo. Entrei sem saber bem ao que ia, voltei arrebatada. Estremeci. Ao ponto de, não percebendo nada da poda, me perguntar se haverá expressão artística mais completa e transformadora que a dança. Aquilo veio direitinho cá para dentro, uma flecha. Um coming of age (e de mais qualquer coisa) quase xamânico. Estávamos muito perto da cena, e esse contacto talvez tenha tornado ainda mais intensa a fruição. Mas se uma das coisas que a arte faz é tirar-nos o tapete, mover-nos, deslocar-nos, então esta dança/performance sobre a memória, o fluxo do tempo, e o corpo, o corpo, é a viagem que precisamos de fazer. A série Reindeer de Bernardo Chatillon anda pelo país (esteve recentemente no CCB e no Teatro do Bairrol Alto), é estar atento.
2. A voz da Sílvia Pérez Cruz e a maneira como canta. É tão difícil escolher que hoje ponho duas.
3. As roupas da Wales Boner. Descobri a designer de moda britânica Grace Wales Bonner pelos livros: na capa da revista The Happy Reader há uns tempos já. Foi um click instantâneo. Wales Bonner pensa com a precisão de um alfaiate. Cada vez tenho menos paciência para modas (exceto quando se casa um irmão) e mais amor pelos livros. Aqui não é preciso escolher.
E um conto
(Bom, um texto. Escrevi-o depois de receber uma caixa cheia de goodies onde também havia um sabão azul. O texto é o meu contributo para o cadavre-exquis que a França, país convidado da Porto Design Biennale fez para a iniciativa, pedindo a artistas, designers, e pensadores franceses e portugueses que desenvolvessem um trabalho criativo com base num conjunto de objectos recolhidos no Porto. Merci Sam, Vive la France e bibóporto!
O mundo era azul
Em casa dos meus avós
Todos os armários da cozinha
Tinham esses dois tons
Azul celeste
Azul marinho
Só não havia nuvens
Em cima da bancada
Ao lado da pia
Não o lava loiças de inox
A pia, de pedra
Distante, apartada
Com outra nobreza
Cheia de veios lindos
Um pano pendurado húmido a cheirar a água
Ao lado da pia,
Onde lavávamos as mãos depois de vir do jardim
Onde bebíamos água com as mãos em conchinha
Pousado na pedra,
Havia um sabão azul
A minha avó dizia
Lavar as mãos
E repetia as vezes que fossem necessárias
Lavar as mãos antes de ir para a mesa
Nós lavávamos as mãos
É às vezes os dedos ficavam ligeiramente peganhentos
Da gordura do sabão
E cheiravam sempre lindamente
Um cheiro que era um sossego
O meu avô lavava as mãos
com energia
Esfregava mesmo
Se calhar a minha avó dizia lhe alguma coisa em francês
Se fizesse algum disparate
Como descascar uma maçã à mesa com um canivete de bolso
Les enfants, les enfants
Repetia a minha avó
Que gostava de mãos lavadas e de falar francês
Quando precisava de dizer, às claras, um segredo profundo
Claras as palavras
Claras as mãos depois do sabão
(Clarim)
Sabão azul que para nós era
bandeira verde para comer
Pão com marmelada
Copos de leite frio
O sol lá fora
Pousado na pedra
O sabão azul descansa
Com a sensação do dever cumprido
A função feita espuma
Moldada a forma
Suave
Dentro da minha mão
Primeiro um cubo
Cortado
Marmoreado na face
Que me puxava para dentro das ondas
Das nuvens cheirosas
Depois as pontas arredondadas
Minguando como a lua
Até desaparecer
Na minha mão
O sabão é a limpeza
E a leveza
Dos dias da minha infância
Quando o mundo inteiro era azul