#13 De Sidere
Burra velha não aprende línguas. Acontece que já não indo para nova, como as burras, também sei ser teimosa. De modo que decidi que ia aprender Latim.
Encontrar quem me ensine uma língua morta no meio da planície alentejana não é a coisa mais óbvia. Mas uma mulher tenta. Uma mulher insiste.
Olho para as vacas, para o borreguinho acabado de nascer (tive-o nos braços, ainda tinha um resto de cordão umbilical espetado no meio da barriga, cheirava bem) e pergunto-me: qual será o teu latim?
As vacas ruminam, não respondem. O borreguinho, já solto, corre a esconder-se debaixo das saias da mãe. Só tem dois dias e já é esperto que se farta. Fareja raposas, diz Nuno, o pastor. Inverte tudo. Eu pulo a cerca e continuo à procura de quem me ensine Latim.
Não encontrando resposta na paisagem silenciosa, vou ao Duolingo, que, para minha surpresa, para além de idiomas ficcionais (High Valyrian, do livro/série Game of Thrones), também tem o seu Latim. À falta de bandeira, o ícone do Latim é um amorzinho: uma coroa de louros, que impõe logo um certo respeito, mesmo antes de entrarmos nas declinações e no genitivo. Ave César, e antes de carregar no botão mágico “Start Learning”, detenho-me na brilhante promessa, resumida nesta frase redonda:
Learn Latin in just 5 minutes a day. For free.
Reparem, está cá tudo: o objeto de desejo (Latim!), a velocidade (só 5 minutos por dia, não sabe o bem que lhe fazia), e a dulcíssima ilusão de que não nos pedem nada em troca (à pala!). Quando for grande, quero escrever um copy deste gabarito.
Olho para aquilo e, desconfiada, não entro. Se calhar deixava o Latim de molho e começava pelo High Valyrian, mais acessível. Sempre gostava de saber como se diz “You know nothing, Jon Snow” em Valiriano. E até substituir o Jon Snow por outro nome qualquer, que chapéus há muitos. “You know nothing, miguinho”, per exemplos, como oiço tantas vezes por aqui.
Mas não me atrevo. Continuo a caminhada à espera que o latim me bata à porta. Esperar que as coisas venham até nós, em vez de correr atrás delas feitas loucas, eis um bom conselho, muito Zen. Às vezes funciona. Esta vez funcionou.
Não demora muito. Em casa dos meus avós, passo alguns minutos a vasculhar o que há de novo nas pilhas de livros do meu pai. São várias. Espalhadas por vários lugares. Tirando o lugar às pessoas, como cães que se esticam, colunas de papel em cima de um velho sofá. As tias bem protestam, mas o que se há de fazer. Então faltam lugares? Também faltam estantes. Sentai-vos no chão. A pilha de livros está numa velha mesa de madeira onde cortei o lóbulo da orelha, roçando nela ao passar, quando era pequena e a minha orelha estava ao mesmo nível que a borda da mesa. Levanto um, depois outro, depois outro ainda, e lá está: Latim do Zero.
Num excitamento, corro até ao meu pai, ocupado a fazer uma pasta com anchovas e gorgonzola: era mesmo isto que estava a precisar. A pasta, o livro. Não estava à procura, era só um desejo. E concretizou-se! E nem tive que pedir às estrelas. O meu pai, que não lê vários livros ao mesmo tempo como eu, mas que devora livros mais do que eu, disse logo que podia levá-lo emprestado. Emprestado, atenção, afinal tinha sido presente de um irmão. Ia voltar. O meu pai gaba-se de não ter qualquer sentido de propriedade. Excepto no que toca a livros, cachimbos e facas.
Então regresso à planura com o Frederico Lourenço debaixo do braço. Grande Frederico Lourenço, que fez e faz não sei quantas coisas notáveis, entre as quais traduzir a Odisseia, que é dos textos que mais amo e que levaria comigo numa viagem sideral. O que me leva à raiz disto tudo. Eu quis aprender Latim porque quero perceber de onde vêm as palavras que comemos e dizemos e mastigamos e eructamos digeridas. Fermentadas. Por exemplo, a palavra desejo, vem de onde?
Como ainda não tenho o dicionário que me prometeram, e o livro do Frederico Lourenço está dividido em 50 lições (que formam uma sequência, mas felizmente não estão cronometradas em xis-minute-reads, poupando-nos o insulto à inteligência), e depois dá-nos a chave para ler Vergílio em directo, mas o livro de Lourenço não é um dicionário, vou ao Google. E então aparece-me esta maravilha, que não sei se será verdade ou uma invenção, mas se for uma invenção é belíssima: “desejo” vem do latim “desidero” (até aqui tudo bem, nada de extraordinário) que por sua vez remete para “de sidere”: das estrelas.
Tudo alinhado, e assim nasce uma nova constelação lindíssima para curtir yo solita. Claro que desejo tem que ver com estrelas. Claro que se só podemos amar o que conhecemos, só podemos desejar o que, mesmo estando à nossa frente, está longe. O desejo é lonjura. Parte da distância, do desconhecido. E depois com sorte consuma-se, e consome-se.
Eu quis aprender latim porque não se começa uma casa pelo telhado. Passo a vida a tentar estabelecer ligações entre palavras que conheço em português, castelhano, francês e italiano, ligando-as e desligando-as, tentando descobrir-lhes os segredos, as manhas e movimentos, as inconstâncias e mutações, os seus desvarios. O mistério é o desejo, o desejo é o mistério.
Três coisas que valeram a pena
Um livrinho. Li há alguns anos “O Mestre e a Margarita” e fiquei fã do Mikhail Bulgakov. Quando um russo escreve, os outros baixam as orelhas (eu hoje estou de asnos, ainda vou arranjar maneira de trazer para aqui o Sancho Panza). Esta semana, pela capital, entrei em vários casinos com forma de livraria (ando à procura de um Baldwin, não quero ir à Amazon) e trouxe alguns livros, embora nenhum Baldwin. “The Heart of a Dog”, do Bulgakov, é delicioso. Não sei se existe em Português, mas devia existir. É a história de um cão vadio que é resgatado por um professor contra-revolucionário e sem saber nem como nem porquê, de vira-lata passa a lorde canino, não traindo nunca a sua natureza, não deixando nunca de ser rigorosamente o que é: um cão incondicional, siderado no seu dono, um cão que fareja e saliva e só pensa em comida e amor. O resto ainda não sei, porque estou a ler devagarinho, de propósito, saboreando. É um banquete de nonsense. É um livro pequenino, que se lê numas horas. É um livro pequeno como só os livros pequenos sabem ser: lêem-se leves, mas perduram. Foi o meu padrasto que me ensinou: os livros não se medem às páginas. E por isso amo ainda mais esta pérola, que digo, deliciosa ostra, que só agora descobri. Uma máxima para guardar:
One can find time for everything if one is never in a hurry.
Um filmaço. Acontece as coisas passarem-nos ao lado e mais tarde agradecermos. Esse delay amplifica o deleite. Eu sei que estou sempre a insistir nisto, mas é mesmo importante para mim. Relevante, como diria uma minha mestra. As coisas acontecem quando têm de acontecer, nem antes nem depois. São como o quilómetro 500 da EN2, à passagem pelo Ciborro, mesmo aqui ao lado. É aquele preciso quilómetro que interessa, não outro qualquer. A certos candidatos às eleições autárquicas locais, parece-lhes uma afronta que esta circunstância não seja devidamente assinalada, ou seja, aproveitada para fins turísticos. Põem-no no programa eleitoral. Eu pasmo, e penso se não teria mais graça assinalar o quilómetro 499, ou mesmo o 327. Mas a verdade é que as coisas acontecem, e acontecem num tempo-espaço preciso, matemático. Eu tenho de dar o braço a torcer e agradeço que assim seja.
Por estes dias aconteceu-me um filme que não esqueci. Chama-se “Barbara”, e é do realizador Christian Petzold, como muitos aí desse lado, mais ligados, provavelmente já saberão. Estando filmado de forma clássica, é inteiramente novo. Não sei explicar de outra forma, vê-lo foi um deleite. A poesia também é precisão. A contenção pode ser infinitamente expansiva. Os enquadramentos e os planos, desenhadíssimos, são libertadores. Tão importante é o se vê como o que se adivinha apenas, em cada imagem, em cada som presente-ausente, na arquitectura dos pontos de vista. O filme tocou-me bem fundo, porque é um filme sobre o desejo (não li mais nada sobre Petzold, tenho outros filmes dele para ver, mas li que “Barbara” faz parte de uma trilogia sobre o desejo), e vendo-o tomei consciência de tantas coisas que estando cá dentro, não estava bem a ver. Como o desejo palrante, o desejo que diz o não dito.Que alegria.
Este som. Monsieur Sisoko, je vous aime. E mais não digo.
Um bónus
Esta semana as crianças regressam às aulas, e eu regresso aos 400 Golpes de Truffaut, filme amado da Nouvelle Vague (o Belmondo era “le plus grand cabot”, mas que beleza de Pierrot). Antoine Doinel, o protagonista, passa a vida a baldar-se às aulas, a fumar cigarros e a ler Balzac. E a inventar desculpas, claro. Quando o director da escola lhe pergunta porque é que faltou pela enésima vez, acontece isto:
E um conto
(Porque a rentrée está aí, porque hoje termina a Feira do Livro de Lisboa, porque esta Promenade vai de lições e de orelhas de burro, porque é proibido proibir, mas sobretudo porque nem sempre há vagar para escrever como apetece, um texto que publiquei no Playtime há anos. Não lhe mexi. Acrescentei uns links, para situar quem não vê desenhos animados japoneses.)
Antes de ser uma apatetada série de televisão, o Menino Tonecas era um livro (na verdade, era um programa radiofónico emitido pelo Rádio Clube Português a partir de 1934). Lembro-me de ir com o meu pai à Feira do Livro, e de me escangalhar a rir com as “travessuras” da endiabrada criatura, enquanto o progenitor se perdia em filosofias, poesias e direitos (algum calhamaço impreterível com anotações ao Código Civil que não lhe apetecia nada, mesmo nada, comprar, mas tinha de ser e tinha muita força).
Depois, voltávamos para casa, mão na mão, e nas nossas mãos Nietzsche e o Tonecas entrelaçavam-se. Era bom sentir aquela mão na minha, a abrir-me os olhos para todas as leituras que me esperavam, e era bom levar aquele livrinho comigo, porque o meu pai mo tinha dado, porque prometia, e sobretudo porque não ia ter de esperar muito até o ler, como acontecia com todas aquelas leituras prometidas que, jurava ele, me iam deliciar. Ce n’est qu’un début, continuons le combat.
Era bom chorar a rir com aquela tonteria. Tonecas, a personagem criada por José de Oliveira Cosme, tornou-se o meu primeiro ícone da travessura (sempre fui muito bem comportada). Tonecas, esse Shin-Chan do Estado Novo. Não mostrava o rabo, mas semeava o caos. Como Shinozuke, era sempre apanhado de surpresa na candura da sua impertinência, na sua ignorância supina, e deliciava-me. Um walking disaster da escolinha separatista.
Chorava a rir, e pelo caminho ia aprendendo algumas coisas sobre Geografia e Ciências da Natureza. Ortografia também, mas isso evidentemente é passé. Não sei se era esse o objectivo: uma espécie de educação pelo contra, uma educação de pernas para o ar (como deve ser) mas a subversão funcionou.
Hoje não faço ideia onde pára esse livrinho endiabrado. Gostava mesmo de o encontrar. Passá-lo-ia aos meus filhos. Com muito gosto. Acho que lhes faria muito melhor que os deprimentes manuais de língua portuguesa com que interagem. Em particular ao mais verdinho dos dois, S., que do alto dos seus seis anos se preparar para enfrentar mais uma semana de duras provas, perdão, “fichas de avaliação sumativa”.
Coitadinha da criança. Felizmente é inteligente e geralmente, depois de fazer os testes, chega a casa e diz-me:
“Mãe, hoje passei-me a tudo”
Que bom, filho, digo eu, melhor passares-te agora que mais tarde, quando as consequências dos teus passanços forem muito mais graves.
Dou-lhe uma festinha na cabeça, orgulhosa, e seguimos em frente, que é o caminho.
As fichas de avaliação sumativa são apenas um degrau intermédio na longa e árdua escalada para o sucesso. Aquelas provas cujo nome desconheço e que as crianças da nação fazem no quarto e sexto anos são outro, um bocadinho mais acima. Depois, nunca mais acaba. Uma escada com um corrimão do caraças, bem formatadinho e quadradinho, que é para não haver desvios.
Na base da montanha, está outra idiotice apuradíssima. Os Trabalhos Para Casa (TPC) que só eram piores quando se chamavam “Deveres” (os franceses, tão laicos e republicanos, insistem no disparate. Para eles, TPC são “devoirs”).
Os meus filhos, repare-se, fazem os TPC. E os “devoirs” também. Que remédio. Este é o sistema que temos, que prepara sucessos e não pessoas, como dizia o outro. A mãe galinha protesta mas deixa-os seguir. Eu nunca tive TPC até entrar para o 5º ano. Na abençoada escola onde fiz a primária, eram praticamente proibidos. Estou eternamente grata aos meus pais por me terem posto numa escola assim. Os TPC não me fizeram falta nenhuma.
Quando a escola não faz a coisa certa, há pais que escolhem, com lucidez e bravura, salvar os filhos da selvajaria reinante. Conheço alguém que proibia terminantemente os filhos de fazerem os trabalhos de casa. O verdadeiro pai-herói. Não sei qual era a reacção das crianças, na altura, mas desconfio que hoje agradecem. São pessoas. Boas.
Não vou ser tão radical ao ponto de sugerir que as crianças não devam aprender, de pequeninas, a ser responsáveis e autónomas. A fazer fretes, até, já que a vida está cheia deles e não vejo nada de mal em ir treinando a capacidade de resistência – resiliência – face à frustração. Mas há maneiras e maneiras de o fazer. E os TPC, aos seis anos de idade, parecem-me a mais fácil, e mais estúpida (amiúde vêm juntas, estas duas) de todas.
Pior do que esta institucionalizada estupidez imposta aos filhos da Nação, só mesmo o institucionalizado colaboracionismo dos paizinhos da Nação. Quando observo, como fly-on-the-wall, as reacções dos pais, os preparativos dos pais, as comemorações dos pais perante tudo o que tenha que ver com as “provas”, estremeço. Eles também, de resto. Tremem como varas verdes perante a possibilidade de fracasso dos seus desprotegidos brotos, sobretudo nas semanas e dias que antecedem a passagem do Cabo das Tormentas, e depois comentam as notas com preocupação, como se as crianças se medissem aos pontos. Assim, em vez de irem curtir o sol que desinteressadamente nos abençoa (para a Praia, para a Estrela, até para o inferninho do Tourel, se for preciso) trancam-se em casa durante o fim-de-semana, fecham portas, correm estores, e no bunker da ignorância preparam os seus brotos para o grande dia.
Não sei o que será feito do Tonecas (que tinha “deveres”, como é evidente, e que muitas vezes não os fazia, como é recomendável) e sei que existe uma reedição que congrega todos os “diálogos humorísticos”. Claro que a vou procurar. Os meus filhos precisam mesmo de um Tonecas na vida deles. Em boa verdade, acho que é a Nação inteira que precisa de um pequeno mestre com tanta categoria.
(se chegaram até aqui, tenho um pedido: partilhem uma Promenade que vos tenha dito alguma coisa com alguém a quem possa dizer alguma coisa. Não estamos no feicebuk, mas estamos aqui no Substack, que é muito bom. E no Instagram também, às vezes. Palavras leva-as o vento, ajudem a espalhar a ventania. )