#14 A Espera
Ainda ontem tinha uma praia inteira só para mim. Era um dia esplêndido de fim de Outubro, levava várias coisas para ler e não li nada. Tomei banhos de sol, escusei aventurar-me no mar já um pouco áspero, e terminei a tarde à frente de um arroz negro dos deuses, enquanto o sol descia e a Arrábida, sereníssima, se deixava estar.
Uma semana depois, estava a caminho do Caramulo, num comboio que me deixou em Santa Comba Dão, fatídica terra a quem perdoo tudo, só porque me leva para perto daqueles a quem quero bem.
No colo, levava “A Morte em Veneza” numa edição em castelhano (!) que papei naquele embalo, enquanto a paisagem corria num desvario de verdes, atrás da janela. Está tudo certo, pensei: Thomas Mann em versão curtinha, um comboio, a Montanha Mágica de braços abertos à minha espera.
Agradecida, deixei a chuva chover, procurei salamandras na floresta, e esperei que o Outono se instalasse. E cá está ele, ainda meio disfarçado de Verão, mas já a roçar-nos com descaro, a meter-se debaixo da pele, num frio bom que pede aconchego e pezinhos quentes, evidente.
De pezinhos quentes, o eufemismo que utilizamos cá em casa para nos referirmos aos amorosos aconchegos que nos vão calhando, não sei bem. Por estas bandas, tudo bastante alado, mercuriano, ultimamente. Mas a fiel salamandra (a de ferro, que o meu Tio Manel solidariamente nos emprestou), está quase pronta para nos acompanhar na gélida travessia que se avizinha. Primeiro, é preciso limpá-la, o que envolve uma aparatosa operação, metendo focos de luz de milhares de kilowatts e escovas e aspiradores potentíssimos. Está tudo controlado. Não sou eu que o faço, é o Sérgio, das Canalizações Silveiras.
Cá em casa, a salamandra é quase uma divindade. Belíssima e negra, reluzindo depois da limpeza anual, de boca aberta crepitante, em festiva contenção de labaredas, toda deslumbre e contemplação. Mal posso esperar, mas o Sérgio, que há de vir limpá-la, só pode para a semana. Por isso, mal podendo esperar, espero. E isto leva-me a Cesare Pavese, que um dia escreveu:
Aspettare è ancora un’occupazione. È non aspettare niente che è terribile.
Claro que em italiano qualquer coisa brilha, mas este homem, francamente! Tudo o que escreve, ah, dio. Ando maravilhada com “O Ofício de Viver” (Il Mestiere di Vivere). Contudo, não consigo resolver a questão: porque é que um homem assim, todo talento, inteligência e sensibilidade, se havia de matar? Se a beleza é virtude que se vê, nele é cristalina. Um estalo. Tenho os cantos das páginas todos dobrados, para poder voltar aquelas frases que correndo, me deixam pregada ao chão. Pasmada. Não consigo escolher só uma. Gosto desta “Se tu és tu, eu sou eu – o que quer dizer que não sei o que fazer”.
Vai um poema, este de “Lavorare Stanca”:
És como uma terra
Que nunca ninguém disse.
Não esperas nada
A não ser a palavra
Que jorrará do fundo
Como um fruto entre os ramos.
Um vento vem ter contigo.
Coisas mortas e secas
Abafam-te e vão no vento.
Membros e palavras antigas.
No Verão tremes.
Ponho-me às voltas com o título (é provável que seja póstumo, este diário que Pavese escreveu entre 1935 e 1950 foi publicado em 1952, dois anos depois da morte do poeta). Viver é um “mestiere”, que herdamos sem pedir, que talvez cheguemos a dominar, que aperfeiçoamos por tentativa-erro, mas é uma trabalheira do caraças. É por isso que comemos: precisamos de energia. A questão é saber onde a pomos, se vale a pena.
Quando é que o “mestiere”, prazeroso e criativo, se transforma em “lavoro”? Quando é que se converte em castigo? Provavelmente, quando deixamos de esperar.
Todo o livro caminha para o suicídio de Pavese. O próprio ritmo, que é poético, livre e exacto, e dá sempre a impressão de nascer sem esforço, é para lá que o leva. Pavese estava farto de trabalhar. Ele avisou: lavorare stanca. E pariu poemas perfeitos, que para nossa graça não queimou em nenhuma salamandra.
A minha mãe diz que quando não temos projectos, acabou-se. Eu, que se calhar nunca tive tanto projecto a alegrar-me a existência, azucrinando-me o juízo também, gosto de me pensar projecto de mulher. A minha mãe diz que, tirando o bebé do Family Guy, que concentra tudo o que há de mau no ser humano, não há nada mais triste que uma pessoa “inachevée”. E eu, percebendo o que quer dizer (refere-se a pessoas a quem lhes falta uma peça, ou várias, ou a argamassa que mantém tudo razoavelmente colado) também sinto que até ao último dia devemos tentar estar o mais inacabados possível, em construção permanente, ou até mesmo em revolução permanente. É esse o assombro.
Realizo que me pus a escrever sobre a espera, que é uma coisa em princípio um bocado estática, mesmo quando fervilha, mesmo quando se leva um bebé na barriga, ou se anda de um lado para o outro num corredor qualquer, ou se dá voltas na cama noite adentro. Mas na verdade, quando me sentei, a ideia era escrever sobre correr, que é uma coisa que não compreendo (daí a aventura, a perseguição através da escrita).
Já tentei. Ou seja, isso de correr, compreendo racionalmente, mas o meu coração não acompanha. As pernas também não, de resto. Sobretudo a décalage pernas-coração, impede-me de me pôr em movimento e ir mais longe. Tinha pensado trazer para aqui o Murakami. Só que Pavese contrariou-me. Puxou-me para dentro do Outono que é recolhimento e transformação. Uma dormência enganadora, porque por baixo tudo vibra. O Outono é um mergulho. Atiremo-nos a ele.
Três coisas que valeram a pena
1) A Clémentine Mélois. Para além de ser uma inesgotável fonte de sabedoria, o eshtagrã está sempre a dar-nos presentes inesperados. Um leitor amigo gamou isto a alguém, pôs nas stories, e eu gamei-lhe logo a seguir, para partilhar com os leitores mais littéraires da Promenade, sobretudo aqueles que têm a felicidade de não estar no eshtagrã. Clémentine é uma professora de artes de Nice, que também escreve e faz estes deliciosos détournements. O meu lado situacionista ficou on fire. Amei.
2) Uma viagem aos oitentas. Porque é tempo de chuva, outro gamanço, que me chegou via Nuno Barão, querido amigo leitor, na emissão desta semana do programa “The Blue and the Mountain”, uma quinta-feira santa por mês na Rádio Quântica (já aqui falei, mas o que é bom nunca é de mais). Granda Annie.
3) Uma poeta. A Nani esteve em Madrizz e trouxe-me um livrinho abençoado da poeta Amalia Bautista, que recomendo com fervor, sobretudo às girls de todas as idades que por aí andam. Aos machos também, a ver se abrem os olhinhos. A Nani é um misto de tenacidade e tendresse. Como boa livreira, a Nani passa a vida a desencaixotar livros. O melhor da Nani, no entanto, é que ela não é fora da caixa. Como os nossos filhos da Geração Z, ela cria a caixa. E a Fonte de Letras é isso e muito mais.
E uma boca
Não tenho nada novo para pôr aqui. Ultimamente tenho despejado tudo para um diário (?) e um diário, como dizia a Beauvoir, em princípio não é coisa para se partilhar descaradamente. Ai de quem ler o meu diário, terá dito. Por isso, em vez de conto, aqui fica uma boca.
Esta semana o imberbe Zuckerberg anunciou que o Facebook já não se chamava Facebook. Agora é Meta. Que amor, pensei. Uma operação de rebranding fofinho que nos convida, às claras, a afundarmo-nos ainda mais no Metaverso virtual no qual já estamos enterrados até às orelhas. Tenho ideia que o nome Facebook nasceu porque quando começou, era uma rede digital desenhada para ligar estudantes duma universidade qualquer na América mais ou menos profunda. Era bastante literal: uma espécie de Yearbook permanente. No fundo, no fundo, o Facebook está cada vez mais transparente. Já não esconde nada: é para o Metaverso que nos quer sugar, mantendo-nos lá o máximo de tempo possível, sempre a facturar, porque lá é que é bom. Mas não podendo escapar ao Metaverso, o Universo continua a interessar-me infinitamente mais. Mudam-se os tempos, e os nomes, mas não as vontades. O Facebook agora é Meta, mas não deixa de ser sempre a mesma meta.