O ano mudou. Alguns de nós fizeram imensas resoluções, outros, não sabendo bem por onde começar, tomados pela indecisão, ou (melhor ainda!) pela preguiça, simplesmente deixaram-se estar. O ano novo é uma ficção. Precisamos de ficção, é claro, para levar para a frente a vidinha, não há como escapar, a não ser, precisamente, ficcionando. Mas eu aqui estou de acordo com os Celtas, que, jura a minha professora de Yoga, começavam o ano na mesma altura em que se dá o Solstício de Inverno no Hemisfério Norte, por volta de 21 de Dezembro. Nem faço ideia se isto é um devaneio freaky. Não fui fazer fact-checking nem está cá nenhum Celta original para o confirmar ou desmentir. Mas que tem sentido, tem. Quando se vive perto do campo, a ligação com a Natureza é muito mais espontânea e intensa. A espontaneidade é uma coisa bela. A espontaneidade é easy, e por acaso não me lembro de ter posto isso nos desejos para 2022, mas fica registado: mais easiness, ah, isso seria bom.
Por falar em coisas easy, easy, estou agora a ouvir esta lindeza do ano de 1959 “The President Plays With the Oscar Peterson Trio”, Lester Young, e que delícia, que embalo, que leveza.
E nesta amorosa correria de Lester + Peterson, volto ao início do ano, às resoluções e à mãe que as pariu, às ficções que se propagam, dentro de nós, para além de nós, aos anos que passam, mudam, gira o disco, vira o disco, e toca e não toca o mesmo, como o rio que sempre flui.
E esta é a pergunta do dia: há quanto tempo não ouves, querido leitor, um DISCO INTEIRO, do princípio ao fim? Aposto que se estás no Spotify (eu juro que não me pagam para dizer mal destes bichos filhos de um grande algoritmo, c’est plus fort que moi) e sobretudo se não possuis um daqueles gira discos antigos, com agulha e limpa-o-pó, há muito tempo que não fazes semelhante coisa.
Toda esta história começou aqui às voltas depois de, num convívio ao relento em que alguém pedia música para trabalhar, ouvir outro alguém dizer “Eu agora quando oiço música, só oiço música, não faço mais nada”. E é mesmo isso. Ouvir música e não fazer coisa nenhuma, sem distrações. Sobretudo, sem trabalho. Não enquanto se escova os dentes. Não enquanto se sapateia no teclado. Não enquanto se prepara o jantar, ou se lê um livro, ou se vagueia distraidamente pelas redes sociais. Ouvir, ouvir inteira.
Eis uma bela resolução de ano novo: ouvir mais discos do princípio ao fim. Porque além do prazer, aquilo tem um sentido. Uma narrativa giratória, altos e baixos, umas melhores, outras piores. Um disco é como a vida mesma. Como as pessoas. É um fluxo, é uma taça vazia e por isso a rebentar de possibilidades, é um lago, e é preciso mergulhar. Ouvir músicas avulsas, uma aqui outra acolá, dispersas, fragmentadas, desconexas, contraditórias, não tem nada de mal. Mas é seguir a carneirada, sem entrar na corrente, verdadeiramente. É mais uma expressão deste rame-rame atomizado em que vivemos (a papinha toda feita, o algoritmo e a ilusão de escolha, ou aleatoriedade, fica para outra.)
Comecei o ano cheia de resoluções. A todas abracei irresolutamente. Abracei-as tanto, que estou em crer que as estrafeguei. Ouvir um álbum do princípio ao fim, pelos vistos, escapou ao trágico destino das suas irmãs, tão boazinhas, tão puras, tão convictas e amarradas e cheias de certezas. E aqui estou, girando, girando, em roda livre com Lester e Peterson. Vou fazer isto mais vezes.
Três coisas que valeram a pena
Nas minhas mãos, um livro extraordinário, “Mendigos e Altivos”, de Albert Cossery, esse tipo que vivia numas águas furtadas (isto é ficção) em Paris e escrevia uma linha por semana. Cada escritor com suas manias, mas esta! Que disciplina, que rigor, que compromisso. Pergunto-me o que faria Cossery se, chegando ao fim da linha, tivesse mais uma palavra para escrever. Comia-a? Deixava-a em suspenso? Abria um alçapão, e enfiava-a ali, coberta de jornais velhos, até que pudesse chegar à claridade, no devido momento? Cada coisa tem o seu tempo, lembra o Eclesiastes. A minha mãe mostrou-mo e eu fiquei vidrada na frase: “Tempo de rasgar e tempo de coser”. Quem não viveu isto não viveu. Depois de passar pelas minhas mãos, o livro de Cossery ficou numa escáfia. Está todo dobradinho nos cantos, em baixo e em cima, diálogos, reflexões, subtilezas. Eu não escrevo nos livros, mas dobro-os, isso sim. É uma questão de desrespeito, uma cena física. Uma escrita frugal, acutilante e espantosamente viva. Senti-me acordar. Para além da minha veia arabique, que não sei de onde vem, mas hei de descobrir quando fizer um teste de ADN, descobri, por baixo destas vestes de burguesinha atormentada, o meu lado anarca. Esta semana comprei um par de botas UGG, para enfrentar devidamente o Inverno alentejano. Não estou pronta para abraçar a indigência, embora cada vez mais cultive o desapego (“despego”, elucida o tradutor, Júlio Henriques, e eu vou atrás, despegando, pois então), sobretudo aquele que toca as coisas que não se tocam, e apenas se sentem. Mas a paz, ah a paz! Conversa entre dois mendigos (orgueilleux) e um polícia (Nur el Dine). Obrigada, Cossery:
- Não há duas realidades - ripostou Nur El Dine.
- Há sim - disse Gohar - Temos, para começar, a realidade originada pela impostura, essa em que te debates como peixe apanhado na rede.
- E qual é a outra?
- A outra é uma realidade sorridente, que reflecte a simplicidade da vida. Porque a vida é simples, senhor oficial. De que precisa um homem para viver? Basta-lhe um naco de pão.
- E um pouco de haxixe também, mestre! - disse Ieguene.
- Seja, meu filho, também um pouco de haxixe.
- Mas isso é a negação de todo e qualquer progresso! - exclamou Nur El Dine.
- É preciso escolher - disse Gohar - Ou o progresso ou a paz. Nós optámos pela paz.
- E por isso, Excelência, te deixamos com o progresso - Disse Ieguene. - Diverte-te com ele. Fazemos votos que te dê muita satisfação.
Antes do ano acabar, os deuses surpreenderam-me com uma viagem-cometa à cidade maravilhosa. Na verdade, os deuses intercederam como gostam de fazer: metendo mortais ao barulho. Adoro estas diabruras cheias de graça, os deuses sabem muito. E foi assim que o meu querido primo Miguel, que trabalha na TAP, me puxou com ele para o Rio, onde nos esperava, de braços abertos desafiando todo amor tanto mar, outro querido primo, Dani, a.k.a o rei do Leblon. Aí em baixo, no microconto, deixo uma impressão dos trópicos. Repentina e estonteada. Vim de coração cheio, infinitamente agradecida ao Miguel, à salvação da TAP, e ao maravilhoso acaso. A mala também veio mais pesada. Um macacão, duas t-shirts para a prole, e três livrinhos (contos, poesia) de um senhor chamado Paulo Henriques Britto, que como dizem daquele lado do Atlântico, é foda. Deixo aqui este texto, para entrar na valsa:
Esta música dos The Byrds. Estou a ouvi-la em loop, para variar. O meu filho Sebastião, que caminha, verdejante, para um gosto musical imaculado, reconhecendo-lhe todo o pauer, já não aguenta mais a faixa. Mãe, já punhas outra coisa. Não lhe sangram os ouvidos, pobre criatura. Por isso eu deixo rolar. É isso, meu amor. Vira o disco e toca o mesmo. O tempo é a coisa mais linda, se nos soubermos alinhar. Está cá o Eclesiastes também.
E um conto
Rio antes de Janeiro
Fui ao Rio e voltei. Não vi Janeiro, não. Foi Dezembro, estava quente, a chuva choveu e eu tomei banho de mar e bebi gengibrinho com os primo. O calor cola, cala, suor transborda, o pentxi dança e redança mas não chega para o meu cabelo, eriçado, desavergonhado, eu sou favelada tropical, minha saia tem mancha de café, eu sou baga, eu sou grão, eu sou planta que rebenta, eu moro no morro e não morro.
Minha casa é o mundo, eu como a comunidade.
Eu escrevo português e deslizo para lá. No meio das árvores que irrompem na calçada, que rebentam no cimento, altas, indomadas, quase, furando janelas, explodindo nas varandas. Fechadas.
Eu não guardei os cheiros, os sabores, os tempos, as luzes os clarões. Eu comi tudo em três dias. Caldinho. Caldinho de feijoada. Eu não sei onde estou não sei mais quem sou. Rio, me leva leve, mi leva levi, mi leva levi pra lá.
Ainda sobre o Ano Novo, este texto do Gramsci, que um Promeneur amigo me fez chegar. É tão bom, tão bom que não precisa de mais explicações. Gramsci, I feel you.
EU ODEIO O DIA DE ANO NOVO (Antonio Gramsci, 1916, publicado no jornal Avanti)
Todas as manhãs quando acordo novamente debaixo da imensidão do céu, sinto que pra mim é dia de Ano Novo.
É por isso que eu odeio esse Ano Novo que cai como uma maturidade acertada, que transforma a vida e o espírito humano em uma preocupação comercial com seus claros balanços finais, suas quantias exorbitantes, seus orçamentos para uma nova gestão. Eles nos fazem perder a continuidade da vida e do espírito. Você acaba pensando seriamente que entre um ano e outro há uma pausa, que uma nova história se inicia; você faz planos e se arrepende dos que não cumpriu, e assim por diante. Isso geralmente é o que há de errado com essas datas.
Eles dizem que a cronologia é a espinha dorsal da história. Muito bem. Mas nós também precisamos aceitar que existem quatro ou cinco datas fundamentais que toda boa pessoa deixa programada em seu cérebro, que desempenharam o papel de pregar peças na história. Essas datas também são Anos Novos. O Ano Novo da história Romana, ou da Idade Média, ou da época moderna.
E elas se tornaram tão invasivas e fossilizadas que às vezes nós nos pegamos pensando que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 e 1492 são como montanhas que a humanidade escalou, para de repente se encontrar em um novo mundo, trazendo uma nova vida. Então a data se torna um obstáculo, um parapeito que nos impede de enxergar que a história continua a se desenrolar em uma linha fundamentalmente imutável, sem pausas abruptas, como quando no cinema um rolo de filme precisa ser trocado e há um pequeno intervalo de luz ofuscante.
É por isso que eu odeio o Ano Novo. Eu quero que todas as manhãs sejam ano novo. Todos os dias eu quero reconhecer a mim mesmo e todos os dias eu quero me renovar. Nenhum dia separado dos outros. Eu quero poder escolher eu mesmo minhas pausas, quando a intensidade da vida me embriagar eu quero mergulhar na selvageria e dela drenar um novo vigor.
Sem cumprir horas espirituais. Eu gostaria que todas as horas da minha vida fossem novas, embora conectadas com as que já passaram. Sem um dia obrigatório de celebração com seus ritmos coletivos, para compartilhar com todos os estranhos que eu não dou a mínima. Só porque os avós de nossos avós celebravam dessa forma, nós devíamos sentir o ímpeto de fazer o mesmo. Isso é nauseante.
Eu espero pelo socialismo por esse motivo também. Porque ele mandará para o lixo todas essas datas que não possuem ressonância alguma em nosso espírito e, ao criarmos outras, essas pelo menos serão nossas, e não as que temos que aceitar sem restrições só por causa de nosso ancestrais idiotas.