#18 A Juventude
Há muitos, muitos anos,
Num reino bué, bué longe,
Olharam para mim e disseram-me assim:
“Sabes, minha menina, a ruga é bela.”
Na verdade, não foi bem isto.
Quem mo disse foi a minha sogra #1, uma mulher brava, sábia e cheia de graça, com quem falo pouco e de quem tenho muitas saudades. Mas sendo espanhola (e basca) ela falava castelhano, e deve ter dito mais ou menos isto:
“Sabes, jovencita, la arruga es bella”.
E rapidamente me esclareceu, dizendo que a frase não era dela, mas do designer galego Adolfo Domínguez, que, tirando a infelicidade do primeiro nome, até deve ser um gajo porreiro.
Sendo um homem da moda, Adolfo referia-se aos trapos que nos cobrem o corpo, e que para serem grandes, não têm de ser inteiros. Ou pelos menos lisos até perder de vista. Ele louvava, sobretudo, o esplendor do linho, que sendo um material belíssimo, mistura de leveza e estrutura sem esforço, não é propriamente fácil de domar. Mas Lourdes, a brava, permitia-se a liberdade de alargar a observação à veste primordial: a pele.
Na altura, Lourdes devia andar pelos 50 anos. Eu olhava para ela e dizia: que mulher bonita! Ela preparava-se para uma festa qualquer, daquelas extintas, que só aconteciam no século passado, e eu gabava-lhe a pinta. “Que guapa!” dizia eu. “Que guapa!” retribuía ela. E lá íamos as duas, guapíssimas.
Apesar dos anos que nos separavam (quase 30) onde ela via rugas, flacidez e decadência, eu só via esplendor e beleza. Por isso, quando veio com aquela ironia, eu nem percebi bem.
Ruga? Quais ruga! Se tu és linda.
Hoje, bem avançada a quarentena, olho para o espelho e repito:
“La arruga es bella, bella, bella.”
Claro que estou pouco convencida. Estico-me toda no esforço de me persuadir. Beijo o espelho como um sapo.
A ruga é bela. É uma espécie de mantra fofinho que as mulheres progre e liberadas se repetem para se enganarem, mas na verdade quem nos dera ter um corpo de 19 aninhos, como dizia o meu tio João.
Será?
(o guaraná)
Tenho pensado bastante no que significa a juventude.
E, se é certo que, estando tão bem onde estou, não tenho especial vontade de voltar aos meus 20 anos, há coisas de que tenho saudades. Temos todas.
A juventude é um cometa. Eu estou sempre a dizer isto, mas o fulgor e o espanto são ainda maiores, porque enquanto somos jovens, não sabemos. É isso que não volta. É isso que nos faz falta.
Não é a voracidade, a curiosidade, a inesperada dança, o deslumbre. Tudo isso se mantém. Até melhora com os anos. É a inconsciência que define a juventude. É disso que tenho saudades, mais do que do corpinho impossível e da pele lisa, emanando doces faíscas. Não é inocência, é inconsciência.
Ah se ela soubesse/ que quando ela passa/ o mundo inteiro/ se enche de graça.
As minhas amigas falam de outras amigas e sobretudo de amigas de amigas, todas de carne e osso porém espantosamente invisíveis, que dão picadinhas cheias de toxinas na cara para encher as depressões. Também me falam de uns fios que se põem por dentro da pele para arrebitar as maminhas. Esta última técnica, confesso, deixou-me pasmada. Um soutien subcutâneo, portanto. Que cena mais à frente, espevitada. Um sustento permanente. Absorvível pelo corpo. Uma beleza biónica. Poderosa.
Pergunto-me como farão as feministas interseccionistas de hoje se quiserem desembaraçar-se dele, agitando-o no ar qual laço de cowgirl empoderado?
Valha-nos Santa Angela, acuda-nos Santa Audre, que irá ser de nós?
Pois, num bai dar. Não podemos desembaraçar-nos de soutiens infiltrados. Porque não podemos desembaraçar-nos do corpo. Ainda menos da cabeça. A mente mente, é preciso limpar-lhe o pó. O corpo, resta-nos o consolo de o abraçar.
Quem diz que a ruga é bela ou feia? Somos nós? São elas? São eles? Somos todas, amigues (aqui não resisto a usar esta cena super fluida, millennial-gen-Z, estamos mesmo todes no mesmo barco).
É a sociedade patriarcal, a beleza pervertida, o culto da crosta, com todos os seus pedestais e invisibilidades instituídos porque sim. Sou eu que vibro com as Angelas e as Audres e que, quase, quase a ser salva pela Bell, me pergunto: que fazes tu aí, ruguinha, porque insistes tanto?
Eu sou uma esteta. Eu sou contradição. Eu amo a beleza. A juventude também. Por isso, até compreendo o excitamento. Mas tento resistir-lhe. Dou um empurrãozinho distraído no plinto e puff, lá caem as “Três Graças”, estateladas no chão. Estás um caco? Toma caco. Passo os dedos na cara, aprofundo o vinco da ferida. O vinco é um vínculo. Uma fenda por onde passa muita luz. A minha vida toda, as minhas vidas todas, nesse vinco. É preciso inclinar-se perante a sua beleza também.
Tenho uma vantagem. Dizem-me bastantes vezes que levo essa juventude em mim, para onde vou. Das duas uma: ou disfarço munta bem, ou nasci velha, e estou cada vez mais inconsciente, será isso? Eu sei que é uma banalidade (ou uma crise de meia idade) mas sinto-me praticamente uma criança. O que até se entende, tendo em conta que tenho um pai adolescente. Porque a velhice traz essa liberdade. Um entendimento novo, profundo, como a dobra que amas. Isso não é nenhum consolo. É mesmo o maior presente. É agora, e isso é tudo. Regalemo-nos.
Três coisas que valeram a pena
Os desenhos da Clara Não. Para os mais distraídos, a Clara Não é uma artista feminista que vive no Bonfim, e gosta de pôr o dedo na ferida. Esta ilustração caligrafada que aqui reproduzo com a autorização da artista é um belo exemplo. Nos tempos que correm, a prática do flirt enquanto mensagem de texto é uma questão de sobrevivência. Não há como escapar. Os putos fazem-no. Os velhos também, e suspiram. As MILFS picam o ponto. Os meus filhos introduzem-me a todo um léxico desconhecido: “deu-me vista”, “isso é ghosting”, e abrem-me os olhinhos "não respondas já”, lá lá lá. E então chegamos ao núcleo da questão. Nesta alegre dança de WhatsApps e SMS, são dois para lá dois para cá. Sai muito esqueleto do armário. O que fazer com esse crush maravilhoso transformado em abominável homem das letras? Pôr-lhe um belo par de patins, evidentemente.
Não sou fundamentalista, não vou dizer “desta água não beberei”, até porque já a bebi. Há vida, muita vida, para lá da ortografia. Da sintaxe também. Mas há mínimos olímpicos. Uma mulher tem de amar-se, por cima de todas as coisas. E alguém que assassina o português, enfim, pode até não ser uma tragédia, mas é um turn off daqueles. Por isso, atentem: não queremos mais “gosta-te”, não queremos que nos digam que “disse-mos”, nem precisamos de “há-des ver” porque já vimos quase tudo. Nem que ninguém nos diga “descança bem”, ficando imediatamente de olhos em bico, como é lógico (não lójico). Como diz a Clara, “Gostas-te do passeio?” Sim, gosto-me muito, com fervor e devoção.
Esta Dobra. Uma ruga é uma dobra. Viva a Adília Lopes, que as vira todas do avesso. Tenho muito para ler, o livro (antologia, Assírio e Alvim) nunca mais acaba. Olhem que prazer:
“Penélope
é uma aranha
que faz
uma teia
a teia é a Odisseia
de Penélope
Penélope está
sempre
sentada
Ulisses é abstracto
Penélope é concreta
a teia é abstracta
e concreta
Penélope casa-se
com Homero
Ulisses fica a ver
navios”
Este novo som de The Smile, a banda de Thom Yorke e Jonny Greenwood que é um side-project é denso e belo que se farta, e me fez voltar aos arco-íris.
E um conto
(Promenade bem longa. Na próxima pego na tesoura. Decidi começar a publicar aqui uma série de contos que escrevi há algum tempo, e que para variar, não viram a luz, porque a publicação a que se destinavam entretanto ficou on hold. Chama-se AUTOBYOGRAFIA e está em processo/progresso. A premissa de que parti foi que seriam textos autobiográficos, cada um surgindo de uma experiência particular, ligada a uma postura de Yoga. São 7 posturas, esta é a primeira. Comentem se estiverem para isso, para ver se continuo. Obrigada à Raquel Shakti, Yoga Master do meu coração, pela bibliografia que me emprestou para escrever estes textos, e tudo o que aqui não cabe.)
“Tadasana
é uma posição bastante conveniente
Para uma mulher que precisa enraizar
como uma rosa.”
Foi sem avisar. Com os dois hemisférios bem ligados, o meu cérebro produziu a imagem da mulher-montanha, e mandou-ma. Vi-a bem nítida à frente dos olhos, colada às pálpebras, no meu avesso, como a silhueta de uma árvore translúcida.
Tadasana, pensei, é uma posição bastante conveniente para uma mulher que precisa enraizar. Tadasana, escrevi, é uma posição bastante conveniente para uma mulher que precisa enraizar. Depois acrescentei a história da rosa, apesar de não gostar particularmente de rosas, nem da forma, nem sobretudo do cheiro, mas uma rosa é uma rosa é uma rosa, e era a rosa, toda delicada e exacta, que me chamava. Uma peónia, que adoro, teria sido demasiado extravagante, cheia de folhos e segredos derramados. Mas uma peónia não enraíza como uma rosa. Ela abre-se, rende-se, entrega-se. Facilmente fica fora de pé. Não podia recorrer a uma imagem de abandono quando procurava exactamente o contrário: a contenção. Um antídoto para o que estava a sentir. O turbilhão.
Não deve ser por acaso que as pessoas se apaixonam mais facilmente quando são novas. Não é só o espírito, movido por uma curiosidade eléctrica, que está mais disponível para o arrebatamento. A terra acabada de lavrar, pronta para receber nas entranhas qualquer semente que ali poise, mesmo que a traga o vento. Sobretudo se o vento a trouxer. Também o corpo, vigoroso e firme, se mostra mais apto para acolher em si esses enlevos, e aguentar o embate.
Na minha juventude, assisti a muitas madrugadas - a aurora rompendo, empurrando-me as pálpebras como guilhotinas - tomada de amores por algum jovem que na altura me pareceria a encarnação de Ulisses, versão grunge. Vestido de Cobain (ou Vedder, sempre preferi o Vedder e os seus olhos verdes-brancos, rodopiando em imparável frenesim) ele saía das águas e eu era a única ninfa que o abraçava, secando-lhe amorosamente as gotas do blusão de cabedal.
Se o amor fosse não correspondido, ou se revelasse incerto, a coisa tornava-se verdadeiramente épica. Enchia cadernos com desenhos e palavras exaltadas, e entre as páginas colava recortes, fotografias, postais, imagens com as quais conseguia relacionar-me e que, com o seu silêncio, me sossegavam o coração. Não dormia, ou quase não dormia, e usava a voz de Chet como roupão, para me afagar as madrugadas. Depois, tomava um duche e ia para o liceu. Apanhava tudo o que os professores diziam. Tirava apontamentos. Tinha boas notas. À noite talvez voltasse a não dormir.
Agora as minhas noites brancas são diferentes. Passado o cabo dos quarentas, não posso dar-me ao luxo de engolir um monte de madrugadas e enfrentar os dias fresca e clara. Tenho sono, muito sono. Sou uma passa, uma ressaca. A partir de certa idade, simplesmente não dá para passar entre os pingos da chuva. Uma mulher anda à chuva, e molha-se. Uma mulher apaixona-se, e está feita. O corpo transmuta-se e entra no estado que lá em casa descrevemos como “gozoso gasoso”. Uma coisa meio etérea, mas borbulhante, uma coisa que flutua e que flui e que não sabe bem onde está, estando imensamente bem.Uma neblina de luz, um véu suave que arrepia, um arrastar pulsante, uma intermitência meio adormecida, uma excitação pueril, e ainda assim macia e doce como um figo maduro.
Claro que, sendo belíssimo, este estado, que é das melhores coisas da vida, não é compatível com a vidinha. Porque apesar de desejarmos que o mundo se suspenda, acompanhando a doçura da nossa viagem, ele trava-nos, movendo-se; ele recusa-se a parar.
Há que alimentar a prole, entrar em mais um túnel de calls,mudar o óleo do carro, martelar o teclado até ao Sol se pôr. E se o espírito se eleva, animado pelo fôlego da paixão, o corpo, pobre corpo, não acompanha. A minha cabeça voa, voa, como a Joaninha, e sobe, sobe, como aquele balão idiota da minha infância na têvê, mas o resto do meu corpo, tenho de o prender ao chão. E tenho sono, muito sono, e perdi a fome, e toda eu sou desconcerto à procura de concentração.
Clemência.
Naqueles dias, fui muitas vezes assaltada por pensamentos invasivos. Uma imagem, uma palavra, uma sequência de palavras, um gesto evanescente e sólido. Preenchia linhas tentando escapar. Procurava fintar todos os cometas, concentrar-me no trabalho, no prazo, no post seguinte, na conta, na frase mágica que teimava em não chegar, na medida precisa da ração do cão, na pilha de roupa por dobrar, em cada cubinho translúcido de cebola picada para o risottodo dia (al dente, al dente), mas tudo era inútil.
A minha cabeça em ruminante macacada, delirante passarada, pensamentos agitados, presa por um fio, que fio, para onde foi o fio?
Foi aí que percebi que precisava de pôr os pés no chão. Descalça.
Não deve ser por acaso que à parte posterior do pé se chama “planta”. Em contacto com a crosta do mundo, é dela que brotam as raízes que tiverem que brotar. As possíveis. Furando a terra, escavando diminutos túneis habitados por criaturas microscópicas que lá em baixo, na barriga do mundo, no solto aconchego do húmus, em coletiva atividade, permitem que vivamos aqui em cima, às claras. Se não o fizesse, arriscava evaporar-me para sempre, desaparecer, deixando tanta coisa por fazer, dois pobres órfãos na terra, pais amantíssimos chorosos (os deles e os meus).
Foi então que o meu cérebro teve aquela brilhante ideia. Produziu a mais bela imagem do Tadasana, e como quem faz um print, mandou o meu coração vulcânico sossegar.
Eu obedeci, e lentamente descalcei um sapato, depois o outro. Deixei-os em repouso, perfeitamente alinhados. Procurei a pedra mais fria do chão da casa e assentei os pés. Coloquei-me tão direita quanto pude, rodei os ombros para trás, os músculos das coxas para dentro, encaixei a pélvis tentando não contrair nenhum músculo, os pés paralelos, os ossos dos dedões tocando-se, os calcanhares ligeiramente afastados. Os meus braços eram duas linhas correndo ao longo do tronco, também eles em repouso, e, no entanto, alerta, energizados. Fechei os olhos, abri o externo para o mundo, as palmas lisas, peneirando as pernas. A respiração pouco a pouco foi abrandando. As raízes começaram a brotar-me dos pés, enfiando-se, verdes e cheias de força, entre os meus dedos separados (é preciso criar espaço, Yoga também é isso).
Tadasana, que significa a postura da montanha (tada + asana, sendo que “tada” é montanha e no Yoga cada postura é um “asana”) é a base de todas as posturas de pé, e, segundo li, uma invenção do Yoga moderno. É uma posição de abertura, que se usa com frequência no início de uma prática ou sequência de Yoga, mas também de retorno, para onde regressamos para sentir o chão debaixo dos pés. Representa a tranquilidade na perturbação. Aparentemente é muito fácil. Não se deixem enganar. Conseguir um Tadasana perfeito é o meu Everest. Segundo a literatura, é indicada para fortalecer as coxas, os joelhos e os tornozelos, melhorar a postura, aliviar a ciática, e contrariar o pé chato. No meu caso, é a postura certa para me ligar à terra, como a montanha que aspira a tocar o céu, sabendo que por muito que se estique, será sempre impossível lá chegar.