#21 A beleza do equívoco
Vou subindo a rua em direcção à Praça do Sertório, já algo apressada, contrariando o flow alentejano, porque tenho coisas para fazer e a minha vida é o trabalho. Espera-me uma reunião, uma call, dezassete e-mails e mais um post. Mas antes, um encontro.
Perto da pastelaria Violeta (uma instituição Eborense, provem os lacinhos) dou de caras com Erri de Luca. Esse mesmo, o escritor italiano de quem não sei nada, ou quase nada, excepto o que dele possa ter escapado, voluntária ou involuntariamente, nos livros que escreveu, e cujos nomes esqueci, tendo ficado o sabor, que é o que importa.
Não sei em que ano nasceu Erri de Luca, nem me interessa muito – “Google it!” diz o meu hemisfério esquerdo, que rege o lado direito, todo compostinho e racional, mas eu marimbo na coisa, deixo o lado feminino fluir e avanço pelos arcos, plena e ignorante – mas na minha cabeça Erri de Luca é um septuagenário feliz, que escreve simples e belo, e que apesar dos seus ares de Italiano do Norte (olho azul, cabelo de prata) nasceu em Nápoles. De maneira que na minha cabeça, que por acaso, naquele instante, se encontrava fisicamente na rua José de Elias Garcia, em Évora, naquele velhote bem-parecido de idade ignota, calções e sandálias de caminhada, e chapéu de algodão cobrindo o cabelo branco, cheio de pinta e de paz, estava Erri de Luca, o célebre escritor italiano, de visita à Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Évora.
Agradecendo a felicidade daquele encontro inesperado, toda contente sigo caminho. “Olha, olha, quem veio visitar-nos!” penso para os meus botões (também eles mentais, levava um vestido azul de enfiar). Dou mais três passos, a reunião espera-me, o trabalho acumulado, o dever, o prazer.
Não, espera. Madalena, espera. O Erri de Luca está em Évora e tu, abençoada pelo acaso (que aqui não é “hasard”, que não é “azar”, que é uma sorte macaca dos diabos) cruzas-te com ele e vais passar-lhe ao largo, desprezando a fortuna da fortuna? Não pode ser.
Então disfarçadamente inverto a marcha, e reaproximo-me do grupo que tinha deixado para trás, só para confirmar se falavam italiano e se se tratava mesmo de Dom Erri. E assim, em frente à Violeta (se lá passarem reparem no letreiro, belíssimo, gravado na pedra) estendo o ouvido para tentar captar o linguajar errante. Por aquela altura, Erri de Luca apontava para o (teatro) Garcia de Resende, trocava impressões com um amigo, mas falava baixinho, na voz invisível dos grandes, e a escuta revelou-se inconclusiva. Ali especada, sem que tivessem reparado no meu espanto, decido que tenho de os abordar, tirar as coisas a limpo.
“Scusi, siete lo scrittore italiano Erri de Luca?” – disparo no meu italiano deficitário, apesar das aulas no Istituto Italiano de Lisboa, apesar de dois anos no liceu em Paris, apesar de Morante, la Storia, Calvino, o seu visconde, e o maior de todos os aristocratas, meu amado Pavese.
O homem olha para mim pasmado.
Feita a investida, não há retirada possível. Insisto:
“Excuse me, are you the famous Italian writer Erri de Luca?” (não acredito que disse “famous”, mas todas as cartas de amor, mesmo as faladas, são ridículas)
Ele olha para mim espantado, poderia dizer como boi para palácio, mas, com todo o respeito, a bois e a burros, de bovino não tinha nada, o homem. Silêncio.
Por essa altura, o resto do grupo já se tinha reunido em volta do aclamado escritor. E uma das senhoras que o acompanhava acode, respondendo num inglês carregadíssimo, a espernear suave um português do Norte.
“Yes, he is a writer”
(Também, eu, em projecto, penso para os meus botões inexistentes).
Nesse instante, la rivelazione. Se somos todos portugueses, como diz o outro, ainda por cima do Norte, cuarago, para quê estar aqui a falar inglês?
Mergulhada na beleza do encontro, rapidamente dissolvo o desencontro. Afinal Erri é Cesário, do Porto, como o meu avô, e com os seus amigos está de visita ao Alentejo. Na maior calmaria, até que uma louca irrompe e lhe pergunta se por acaso não é um escritor famoso.
E se de repente um desconhecido lhe oferecer flores? E se de repente uma estonteada lhe perguntar se é um autor traduzido em vários idiomas?
Isso é impulse. E Promenade, também.
Rimos em uníssono e tiramos uma fotografia, registando a beleza do equívoco (está no eshtagrã). Mostro-lhes a fotografia do escritor italiano e todos concordam que são muito parecidos. Afinal, não estou tontinha de todo. Pergunto-lhes se precisam de alguma indicação, sentindo o Alentejo entranhado em mim, querendo oferecê-lo ao mundo, de mão beijada, como Ele se dá, mas estão orientados. Seguimos viagem, eu para a praça do general Romano, eles para fora da muralha, como deve ser, que há muita Évora para além dela.
Como dizia mestre Pavese, “não se recordam os dias, recordam-se os instantes”. Estou sempre a repetir isto, mas acredito mesmo nisto. Isto é a beleza de se estar viva. É por isto que dou graças. Nas coisas pequeninas, nas que rebentam a escala de tudo o que se sonhou. Naquilo que sentimos debaixo dos pés, naquilo que nos transcende, mesmo estando dentro de nós. Na curtíssima diferença entre a ficção (a fantasia) e a realidade. A realidade não supera a ficção. No fundo, são uma e mesma coisa.
Três coisas que valeram a pena
James Baldwin. É um escritor do caraças. Era um homem do caraças. Eu gosto de tudo em James Baldwin: da maneira como fala, da maneira como escreve, do seu caminho, da sua luta, dos seus olhos disparados, do seu sorriso escancarado, da sua pluma linda e livre, porque ele era mana, e era lindo e linda e livre. Por estes dias, vi na Mubi o documentário “Meeting the Man: James Baldwin in Paris”, que é basicamente o registo de James Baldwin a deixar-se filmar, bastante a contragosto, por uma equipa de documentaristas brancos em alguns momentos do seu exílio em Paris. O documentário foi rodado em 1970, uma época “hot” pelas piores e pelas melhores razões. James Baldwin tem uma doçura incrível. He can’t help it. James Baldwin tem uma assertividade vulcânica. He can’t help it.
Num momento do documentário, ele deixa-se/faz-se filmar debaixo do monumento da Bastilha, porque faz questão de dizer que aquela história da “Liberté, Égalité, Fraternité” é uma ilusão. Tudo aquilo é muito programado, encenado, controlado, e isso, como é lógico, chateia. Chateia o documentarista, visivelmente irritado apesar da imperturbabilidade britânica, e chateia quem vê. Sobretudo se for branco, como o documentarista. Mas também se for mais espontânea, como eu. Mas Baldwin faz questão de dizer porque é que está ali, e porque é que precisa de dizer o que tem para dizer. Que é que aqueles ideais, nos Estados Unidos e em França e no resto do mundo incivilizado na prática são uma grande tanga. Ele está ali para pôr o dedo na ferida, dando a cara e o coração.
Nascer-se negro nos Estados Unidos é um sarilho, é isto. Desde que nascemos, pretos e brancos, nascemos para morrer. Mas para alguns é mais rápido, mais estúpido, mais fácil, se estiveres no lugar errado à hora errada. Ou pior: se estiveres no lugar certo à hora errada, que é praticamente sempre.
Vi este documentário numa tarde de domingo, de ninho vazio. Fiquei a matutar nele por longas horas. James Baldwin faz-nos ver coisas importantíssimas. Antes de ver o documentário, tinha-me apercebido, à distância, de uma discussão bem portuguesinha a propósito do conceito de “apropriação”, lançada por um vídeo publicado pela Rita Pereira (branca) nas redes sociais, em que aparecia de penteado africano a dançar/cantar uma música muito pouco consensual (da autoria de uma branca e uma mestiça) com alusões à negritude. Muita gente, preta e branca, se revoltou acusando Rita Pereira de, com as suas trancinhas e tribalismos de Tik Tok, se apropriar indevidamente (e desrespeitosamente) da cultura africana, num processo de inversão que não pode acontecer porque ela é branca, e partindo desse privilégio branco, não há forma de inverter, ou de expurgar a culpa por séculos de opressão de brancos sobre pretos. Vistas assim as coisas, esta cena não tem saída. Mas eu resisto a esses limites, a esses fechamentos. Eu não sou especialista em questões de raça. Li algumas coisas, tenho muitas dúvidas.
Então fui à fonte, socorri-me de Santa Angela, que vem sempre em meu auxílio nos melhores momentos. Mergulhei no livro “Women, Race and Class”, que devia ser de leitura obrigatória. Angela Davis explica muito bem as coisas. Explica fundamentalmente a intersecção entre racismo, patriarcado e classe. Em tudo. Explica como estas coisas, justamente, estão cheias de nuances e interesses. E ilumina as relações entre feminismo, concretamente a luta das sufragistas, a ficção da abolição da escravatura, a relação entre brancas e negras, privilegiadas e oprimidas, e de todas elas com o domínio do homem branco (e negro também, como hipótese ou fantasma). Depois de ler Angela Davis, fiquei mais sossegada. Não é possível desligar umas coisas das outras, e, digo eu, e a partir de um lugar consciente, a apropriação, nos dois sentidos, não só é possível como é muito desejável.
Pergunto-me – faço sempre esta pergunta – partindo do princípio de que o que conta é o lugar a partir do qual falamos, que lugar é este onde estou? Eu, neste espaço-tempo-corpo-mente, que sou mulher, e branca, e preta, e super mixed e super privilegiada? Eu não posso falar? Não posso apropriar-me? E se decidir fazê-lo, aproprio-me de quê? Aproprio-me de mim própria? E se o meu bisavô não tivesse nascido na ilha de São Vicente, ficava caladinha? E se eu nasci neste mundo, não posso pensar outro mundo? Com todos estes pensamentos felizmente mixados na minha cabeça, Baldwin acrescenta mais um ponto. De extrema importância. O que é preciso, sejas branco, ou mestiço, ou chinês, é uma transformação. Com aqueles globos gigantes, lúcidos, brancos exorbitantes sobre a pele negra, Baldwin diz ao homem que filma:
Those people around you. They are also you. You could be that monster. You could be that cop. So you have to decide in yourself not to be.
É um movimento. Eu escolho fazê-lo. O racismo é uma maldição? Pois é. Mas o racismo é uma possibilidade de libertação. Porque é preciso resistir, e olhar de frente para o homem branco que habita em todos os não pretos, que habita mesmo uma mulher mixed e progressista, e dizer-lhe “tem juízo”. Nunca saberei o que é ser um homem preto, nem uma mulher preta, nem nos Estados Unidos, nem debaixo da Bastilha, nem em Portugal. Mas isso não significa obliterar o pensamento, o movimento da consciência, que é minha. Outra coisa muito certa Baldwin diz: para refletirmos (e transformarmos): “Love has never been a popular movement.” Verdade. Ora aí está uma bela razão para que passe a ser. É preciso mexer-se.
2. Siza Vieira. Vejam se puderem o minidocumentário sobre o Bairro da Malagueira, uma entrevista com Mestre Siza, que diz verdades pelo menos ao mesmo ritmo com que fuma Camel, espalhados em vários maços sobre a secretária. Está aqui em baixo. Vale a pena espreitar também a entrevista que deu à revista Apartamento. Está em inglês, mas traduzo livremente este desabafo, quando perguntam a Siza porque razão não vive numa casa projetada por si, seria um cliente demasiado difícil? (de génio para génio, ora vejam:)
“Sem dúvida. O que anima o processo de construir uma casa é o diálogo com o cliente, com o “dono da obra”. No meu caso, como seria o “dono da obra” e o arquitecto ao mesmo tempo, este diálogo seria muito pobre e não muito produtivo. Não sou como o Fernando Pessoa, que tem conversas com os seus heterónimos: só falo comigo e dizia não, não, não. Estou bem assim”.
3. Os Praga. Tenho a sorte de viver num pedacinho do mundo onde se passam coisas incríveis (em todos se passam, mas este é o meu lugar, o que eu escolhi). Por exemplo, a ante-estreia de “A Sagração da Primavera” pelos fabulosos Teatro Praga. Não percebo nada de bailado ou de música clássica, mas o Stravinsky estava em modo full power quando compôs isto (viu-se o resultado, leiam aqui a descrição da estreia) e os Praga levam-no para um sítio louco, e lindo, de onde ele nunca saiu, porque já lá estava. Esta é uma peça sobre o desejo, sobre a vida e a arte como desejo, e acabou-se. Vi esta maravilha no Espaço do Tempo, e fiquei banza algumas horas. A pensar nisto vários dias. Depois, andou por Lisboa e Porto. Sortudos os que vibraram nesta dança. Viva os Praga!
E um conto
Interrompo a Autobyografia. O Chico diz que o amor não tem pressa, e eu, pois ora essa, concordo. Também é um bocadinho isto, “rendes-te ou morres”, pelo menos para mim.
rendes-te
ou morres
era um jogo que jogava muitas vezes
pequenina
sobre a cama dos meus pais
luta fictícia
combate amoroso
reinação, rendição
(playful como a existência mesma)
eu amava aquele jogo e agora sei muito bem porquê
foi aí que descobri que o amor não tem medo
que o amor se dá, se ri
que o amor rola e rebola e é sempre bom
um colo, um ninho, uma clareira ao pé de um lago
o sol derramando espectros
entre as copas das árvores, bulindo bem,
sobre as nossas peles,
sedentas e temperadas.
eu amava aquele jogo porque render-se era uma vitória
o amor é a vitória de se perder
sem medo
de partir para a batalha e perder de novo
de novo