Nos buggies escanzelados galgando as dunas do nordeste brasileiro, perguntam sempre aos turistas antes de embarcar: “Com emoção, ou sem emoção?” É evidente que, tirando algumas lesmas oleosas que por aí se arrastam (alô, alô Mr. Musk, o que dirias tu?), ou alguém que tenha o infortúnio de padecer de uma enfermidade das costas, a maioria dos passageiros irá responder: com emoção.
Foi isso que fiz. É preciso dizer que já vinha vacinada. São muitos anos de praia. De dunas também. Em pequenina, palmilhei (é um dizer, ia pulando) a serra algarvia inteira, e a costa vicentina que nos esperava, abrindo-se para o imenso azul, desconfortavelmente sentada num dos bancos traseiros do UMM do meu pai. Desconfortavelmente sentada, e tão feliz. Tanto salto, tanta gargalhada, tanto gritinho irreprimido, pumba, catrapumba, mola franzina com a coroa da cabeça roçando o tecto de lona, lá ia eu, leve como um pássaro louco e nervosinho, montanha russa ambulante, barlavento, sotavento, nuvens e plantas, mar à vista, falésia sem fim, aquele frissonzinho a subir, a descer, caminhos de cabras, as próprias cabras, pedregulhos, surpresas, deslumbramentos, vertigens miúdas, e, finalmente, quatro anti-climáxicas tábuas enfiadas por baixo dos pneus quando o enorme bicho de aço decidia fazer de mula e, atolado na areia, não tugia nem mugia. Quando, depois de muitos bitaites e tentativas colectivas de pôr fim ao atolamento, Zé dos rallies lá conseguia libertar a criatura, era uma festa. Saudades? Muitas! E do futuro também, claro!
Para além de saúde, não me lembro bem do que pedi a 2022 quando chegou. Mas nesse primeiro dia de 2022, se acaso me tivessem perguntado “Com emoção, ou sem emoção?” teria respondido já se sabe bem o quê. Não me lembro o que pedi, mas o que veio, ai minha nossa senhora, rebentou a escala (expectativas, em princípio evitam-se. Ooooommmm e muito Tao para todos vós).
O ano ainda não acabou, até ao lavar dos cestos é vindima. Talvez fizesse bem em ficar de boquinha fechada, onde já se sabe que não entram moscas. Mas esta Promenade é para sair já, estamos desde agosto de sequeiro, por isso que se lixe. Não querendo fazer balanços, limito-me a fazer o que é devido e óbvio. Dou graças.
E porque esta terra é imensa, e aqui cabe tudo, ou quase tudo o que importou na minha vida este ano, dou graças pelo Alentejo. Meu ninho, meu caminho, minha madrugada. Não é preciso mais nada. Eu bem tento, mas é difícil pôr em palavras o que eu amo esta terra. É isso que acontece com os amores à séria. Fica-se muda. Então vou a Mestre Torga, que escreveu que o Alentejo “é o máximo e o mínimo a que podemos aspirar” (ai, eu derreto) e caladinha, encho-me de silêncio para o ver passar:
Se há marca que enobreça o semelhante, é essa intangibilidade que o alentejano conserva e que deve em grande parte ao enquadramento. O meio defendeu-o duma promiscuidade que o atingiria no cerne. Manteve-o vertical e sozinho, para que pudesse ver com nitidez o tamanho da sua sombra no chão. Modelou-o de forma a que nenhuma força, por mais hostil, fosse capaz de lhe roubar a coragem, de lhe perverter o instinto, de lhe enfraquecer a razão (...) É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador. Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.
É isto. Um alentejano nunca tira o seu chapéu, a menos que seja para o oferecer a quem o mereça, como nesta moda muito linda:
Esta história dos chapéus, e a resiliência alentejana, levam-me a outro clássico. Dedicado a todos aqueles que continuam à procura de chapéu que lhes assente como é mister. O pires, a chávena. O chapéu, a cabecinha. É preciso é que encaixe, desdenhar as migalhinhas, ser grande e ser inteira. Vou a Vasquinho, que lá do ecrã prateado nos lembra que chapéus há muitos. E há. Mas é preciso encontrar o certo, aquele que não falha, nem largo, nem apertado. Elegante, dançante. Luvas há muitas, palerma!
É claro que também há quem embique num chapéu, e depois é um sarilho. É lidar.
Com emoção, sem emoção? Não foste tu que pediste um Porto Ferreira? Pois toma-o, bebe-o! Dá o peito às balas, às flechas, aos dardos, às doces e imprevistas fisgadas. Não conheço outra forma de viver. O resto, é só não estar morto. Bom ano, promeneurs, contra os canhões, flanar, flanar!
Três coisas que valeram a pena
Foram muitas, nestes meses. Escolho três.
1. Este livro do checo Bohumil Hrabal, “Uma solidão demasiado ruidosa”. Santa ignorância, um dos maiores escritores checos do século XX, e eu descubro-o na segunda década do século XXI. Claro que como diz o outro, “ignorance is bliss”. Só que aqui, acontece de uma maneira um bocadinho diferente. A felicidade está inteira não em perpetuar, mas em desfazer a ignorância, porque retardamos (logo prolongamos?) o prazer de descobrir um escritor novo, mesmo morto, ao encontrá-lo tardiamente. Que livraço. A história de um prensador de livros, resistente e apaixonado, numa escrita precisa como um tiro, e tão solta! Um livro cheio de deambulações, desvios, devaneios, cheio de sonhos, portanto, e, no entanto, fincado à realidade mais dura, implacavelmente certeiro. Acutilante. Com um pé na História e outro nas nuvens (Boris Vianesque?). Eu não sei, vão ler. Já tenho outro Hrabal esperando-me na estante.
2. Uma ida ao teatro Garcia de Resende (ahhhhh) em Évora, para assistir a Ôss, de Marlene Monteiro Freitas para a Dançando com a Diferença. Como explicar isto? Saí a chorar. Até vir para o Alentejo, a minha experiência das artes performativas era praticamente inexistente, acho que já o escrevi para aqui. Então, chegar aqui e ter a fortuna de ver tanta coisa boa (e até pisar um palco, oh la la) tem sido um espanto constante e saborosíssimo. Eu gosto de livros, e gosto de cinema, e oiço tanta música (muitas vezes em ruminante repeat), e gosto de belos quadros e poemas. Mas o teatro, a dança, à nossa frente, sem nada pelo meio, uma mediação sem mediação, o tudo ou nada, o visceral instante, isso é pauer. Este “Ôss” deu cabo de mim, no bom sentido. Imaginem um espectáculo que começa com um DJ em calções de boxeur (num teatro neoclássico), um DJ frenético que por acaso tem síndrome de down, e quase termina com uma mulher deitada numa cama, numa camarata de um navio imaginado (alô alô Signor Fellini?), a cantar “The Man I Love” com uma voz que treme toda, como todo o seu corpo. Aquela mulher – diferente – somos todas nós. Todos e todes também. A vulnerabilidade e o amor somos todas nós.
3. Lobo e Cão. Saí do cinema meia tonta (já ia tonta, mas há sempre espaço para mais uma voltinha) com o novo filme da Cláudia Varejão. No carro, com a minha amiga N., comentávamos a inexplicável beleza, cada plano, a fotografia, o som, a montagem do som, as interpretações incríveis de um bando de atores não profissionais, todos recrutados em Rabo de Peixe, nos Açores, onde o filme foi rodado. Então, do alto da minha ignorância (isto é uma trend, está-se a ver), perguntei: “Mas porque é que o filme se chama Lobo e Cão?”. E a N. respondeu: “Ora, porque somos todos isso, as duas coisas num só, nem preto nem branco, as duas coisas”. Agradecida, continuei a mastigar o filme por longas horas. Esse é o deleite dos filmes grandes: não nos largam, e isso é bom. Antes de ver o filme, não tinha lido nada ou quase nada sobre ele. Continuo sem ter lido. Bastou-me ver. Sabia que tinha sido rodado nos Açores, sabia que envolvia um cast de actores não profissionais, sabia que não era bem um documentário, mas também não seria inteiramente ficção. Voltamos à eterna questão: mas o que é um documentário? Mas existe tal coisa? Ao que vamos: para mim, este é o melhor filme da Varejão desde “Ama San”. Consegue aquela proeza reservada para muito poucos: é um filme maduro, de uma frescura intensa. O filme inebria, sim. Sendo um filme que foca (desfoca, volta a focar) numa ilha dentro de uma ilha dentro de uma ilha – um grupo de jovens LGBT que a realizadora encontrou em Rabo de Peixe – é para a imensidão do mar que aponta, para lá da ilha, para as infinitas possibilidades, para o querer que nos move. Estamos sempre nesse balanço, nessa indecisão: dentro/fora, aberto/fechado, aqui/ali. Eu tenho esta tendência para ver o amor em todo o lado, mas este filme é uma declaração de amor ao amor. Entre amigos, entre pares, entre mães e filhos, irmãs e irmãos, e pais e filhos também. Foi isso que vi, para além do desejo, para além do querer, do querer muito. Cheguei a casa inundada disto tudo. Só pensava em abraçar os meus filhos, que já dormiam, sugaditos, e obviamente não perceberam o que se passava com a mãe, assim repentinamente tomada. A Cláudia Varejão está no auge. É maravilhoso como ela conduz o filme, que é uma espécie de roda, uma roda aquática, que nos enleva e embriaga, sem nunca perder o azimute. Não é só o que ela nos dá a ver que nos conquista e arrebata (e o filme está cheio de sequências arrebatadoras. Estou a lembrar-me da folia da festa na praia, o banho de mar, a lagoa, e a luta fingida a madrugar noutra praia vulcânica). É sobretudo a contenção que Varejão consegue imprimir a um filme intensamente livre. Ela não faz cedências. Foca, desfoca. Revela o que importa. Só isso explica que num filme que é também uma declaração de amor aos Açores – azul, azul, e isso é claríssimo, sobretudo nos planos iniciais do filme, em que tudo, das ondas às caixas de peixe, parece pintado de mar e de céu – não se veja uma única hortênsia.
E um conto
(poeminha para o Alentejo e seus amores)
que valente és
no silêncio feito timbre
que não esqueço
no recato, a altivez, a segurança
no sossego toda a chama
na lonjura cada instante
que não esqueço.
passeando o infinito que não foi
eu vejo
eu beijo
esta terra, este céu, este chão
e encurto todas as distâncias
como a sombra que enfim regressa ao corpo.
Que belo texto, Madalena! Como são todos os outros que você escreveu. Obrigada!
ERRATA: Queridos Promeneurs, havia uma imperdoável gralha no nome na obra de Marlene Freitas/Dançando com a Diferença. Já está corrigida. O nome correcto é ÔSS. E também um botãozinho de "subscribe now" que se intrometeu pelas palavras. Já está eliminado. Grata pela compreensão.