#23 Andamento
Abril é o mês mais lindo, outro mais lindo não há. Tinha tanta coisa para contar, mas perdi tudo neste andamento febril, Abril.
Abril é gigante, é maior que nós, e aqui onde vivo, Abril é outra coisa.
Vejam bem: é preciso vir ao Alentejo para perceber Abril.
Eu sou filha da madrugada, aquela inteira e linda que esperavas, e eu esperava. No Outono de 1975, eu passeei numa alcofa, e dormi descansada, de punhos cerrados de bebé feliz, fazendo sem saber a minha revolução, enquanto os meus pais, lá fora, se batiam por fazer a deles. A de todos? A que era preciso fazer. É assim.
Eu percebi muito cedo que a Liberdade é uma luta constante, mesmo antes de ler Santa Angela e ficar definitivamente esclarecida, como já aqui escrevi. Eu disse à minha mãe, que provavelmente me incentivava a partilhar o que tinha com outros filhotes da revolução: “Eu não sou egoísta, eu sou comunista!” (libertária, bien entendu).
Eu sei que já escrevi isto tudo, mas esta sou eu, e repito-me, vão-me desculpar. Amigos às direitas, eu amo-vos também. Já dizia a minha avó Benedita, naquele dia na Capela do Rato, “perdoai-lhes Senhor, pois não sabem o que fazem”. Eu quero olhar para Abril com os olhos líquidos do Salgueiro Maia. E olhar, e olhar de novo, sempre pela primeira vez. Não sei se será esta a última utopia, mas no fundo isso nem existe, porque a utopia é isso mesmo: o andamento.
E este ano, andei, andei. Na noite de 24 de abril, meti-me no carro com quatro imberbes criaturas, os meus filhos e mais dois, e rumei a Évora, para participarmos nas comemorações do Dia da Liberdade na praça de Giraldo. A praça estava cheia, como me tinham anunciado. Nunca tinha visto Évora assim. O Giraldo a rebentar de gente, um palco imponente e lá em cima uma fadista a cantar já não me lembro bem o quê. Não é isso que importa. O que importa é que estávamos lá para cantar a Grândola, mal soasse a meia-noite, como é tradição. E então, arroupada pelos meus bravos rapazes, eu descubro a tradição na revolução, e não sei bem como processar isto, mas estou lá, e vibro e tento cantar.
Os festejos não correram como esperado. O fado prolongou-se mais uns minutos e quando o grupo Cantares d´Évora pisou o palco já passava da meia-noite, os fogos de artifício já estalavam lá no alto, por cima das nossas cabeças, zunindo e explodindo em solene liberdade. Neste atropelo, ainda tentei agarrar umas estrofes, mas não se ouvia nada, nem os próprios cantadores e cantadeiras se ouviam entre si, apesar de estarem compassados, ombro a ombro, como se canta aqui. Para os eborenses, claro está, foi um flop. A mim soube-me a pouco – já dizia o outro – mas agradeci, e pensei que se tinha ido até ali para cantar a Grândola, ia fazê-lo, nem que fosse em lip sync. E depois de tudo, soube-me a pouco, soube-me a pouco, mas como lembra mestre João Gilberto:
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito, bate calado
No peito dos desafinados
Também bate um coração
E assim o meu coração foi batendo, batendo, e andei, andei, pelas ruas da bela desadormecida, feita Ulisses sem esquecer a Penélope que há em mim, alegremente descaminhada ainda assim, descaminhando-me a mim mesma, parando aqui e ali, sozinha, acompanhada, avançando à espera de nada, com uma latinha de coca-cola na mão, tragando imperialismo no dia de todos os cravos, porque eu vim de longe e vou para longe, são 27 quilómetros até casa, a responsabilidade impera, são quatro imberbes no carro e nem uma gota de álcool no sangue. Ironia das ironias. Miséria das misérias. E então ressignifico a questão: Foi para isto que se fez o 25 de abril?
Depois de dançar loucamente na SOIR Joaquim António d’Aguiar, primeiro ao som de uma banda incrível que tocava covers do século passado (Fanfarra Bizarra), e depois ao som de batidas africanas (e não só) trazidas pelos igualmente incríveis Estereocleidomastoideo (veni, vinil, vici!), e depois de, cansada de fazer de mãe-helicóptero, finalmente recuperar as crias, abalámos rua abaixo em direção ao Rossio de São Brás. E então, coisa mais linda, vi os filhos dos filhos da revolução apertarem-se num abraço contínuo, mão no ombro no ombro no ombro no ombro, e juntos entoarem a Grândola, quatro rapazes, todos nascidos nos anos 2000, enlaçados uma linha que dançava, rasgando a noite e o silêncio para cantar a liberdade.
Foi para isto que se fez o 25 de Abril? Pois calaro. No Alentejo, ninguém canta sozinho.
3 coisas que valeram a pena
1. O discurso do Chico no Prémio Camões. Eu amo o Chico, casava com ele sem pestanejar. É este o nível. Para quem não ouviu, está aqui, rara fineza.
2. O jantar literário da Fonte de Letras. No dia mais bonito, fechando a Feira do Livro de Évora, a livraria Fonte de Letras organizou um jantar literário cujo título, tirado dos versos de Natália Correia, era “A Poesia é para Comer”. O título era mesmo só um amuse-bouche, porque o que veio a seguir foi um festim. O poeta e tradutor Vasco Gato escolheu uma série de poemas, todos tocando a comida e os alimentos, mas não da maneira mais óbvia ou previsível, e o chef Francesco Ogliari, do restaurante Tua Madre, casou-os com uma série de pratos, criados à medida de cada texto.
Juntaram-se os dois à esquina e quem esteve regalou-se. Fiquei a conhecer imensos poetas que me teriam passado ao lado de outra forma. Como a Naomi Shihab Nye, que escreveu este belíssimo Red Brocade (ouvimos em Português, tradução do Vasco Gato). Cada prato é poema, cada poema é um prato, e sendo impossível regressar aos sabores mais literais, porque esses já os comemos, fica este Com unhas e dentes, do Luís Filipe Parrado, que foi servido com um Carpaccio de couve-rábano, bacalhau mantecato e laranja.
Estar vivo
É abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes
o sabor amargo da casca,
de tão doce,
não o esqueces.
3. Esta música da Nara Leão. Tenho ouvido tanta coisa, não sei para que lado me hei de virar. Esta pareceu-me adequada ao momento.
E umas linhas
(Esta história vem no seguimento da decisão do município de Montemor-o-Novo de espetar cravos brancos no cartaz das comemorações do 25 de abril. Lindas farpinhas. Também os vi pelas ruas, e em algumas lapelas, mas nem me dei ao trabalho de esfregar os olhos e segui. As palavras que me vieram à cabeça: a vida é como o Tide, branco mais branco não há. Ao meu amigo José Miguel Gervásio pelos vistos também lhe ocorreu coisa parecida. Ele faz uma análise imaculada sobre o fenómeno da beatificação dos cravos que podem ler aqui. Depois disto, eu não tenho grande coisa a acrescentar. Ainda assim saíram-me umas linhas. Vou ali meditar. )
Os monges Zen que me perdoem
Mas não existe caminho do meio
No meio está a vidinha
E da vidinha não queremos saber
A eira, o nabal
Abril, Novembro
Estar sempre do lado do Sol
Do brilho, do espanto
Já olhaste o céu ao meio-dia?
Já olhaste o Sol ao meio-dia?
Impossível vê-lo brilhar
Focá-lo, comê-lo, entendê-lo,
Quanto mais
Eu quero engolir madrugadas
Desaparecer num crepúsculo curto
Só para romper outra vez.