“Quanto piores estemos, melhor nos tratemos” é uma frase que ouvi tantas vezes repetida que lhe perdi o rasto. Apesar da provecta idade, não perde frescura.
Dias houve, não tão distantes, em que senti com todo o pauer as dores da alma, e não tendo, em princípio, vocação de masoquista, também isso agradeço, por terem feito de mim o que sou, o processo de ser que sou. Mas agora é o corpo que me aflige, e para além dos afectos, da poesia, e das doses diárias de drogas com que o vou enganando, é de pensamentos assim que me socorro. Acções também.
“Quanto piores estemos, melhor nos tratemos”, e se a vida te dá dores nas cervicais, oferece-lhe uma travessa de ameijoas à bulhão pato, e seu raminho de coentros alentejanos. “Quanto piores estemos, melhor nos tratemos”, e se não consegues conduzir mais de sete minutos seguidos sem ganir, reclina o banco de copiloto, saúda a alegre companhia dos teus brotos, e ruma a Oeste para mergulhar no azul do mar. “Quanto piores estemos, melhor nos tratemos”, e se sentar-te para escrever umas linhas é um calvário, escreve de pé, melhére, que foi para isso que se inventaram os passe-plats, estiradores improvisados deste ninho a Sul do Tejo.
Ando há três semanas que não me reconheço. E desejando, desejando, que isto passe, realizo que ando há três semanas a conhecer-me melhor. É um processo de identificação em curso. Comigo, dentro de mim, fora de mim.
Na bomba de gasolina da rotunda, a mulher pergunta-me, depois de pagar o combustível e o café: “Deseja mais alguma coisa?”. Desejar, desejo, mas o que eu desejo não se encontra aí desse lado do balcão, infelizmente (ou talvez não). A mulher, que é um ser luminoso apesar do aparente desinteresse das suas oito horas diárias ao serviço, continua a insistir, e a rir bem alto de cada vez que repito a desalentada resposta. Eu desejo muita coisa, estou eu a pensar, e nada do que eu verdadeiramente desejo se encontra aí desse lado do balcão, mas sobretudo, desejo desejar.
E estamos nisto, até que um dia, depois de pagar o combustível e uma barra de Snickers (quanto piores estemos, pior nos tratemos), a mulher dispara a pergunta de sempre, e eu atiro: “Desejo, desejo, desejo que me passem estas dores nas costas para voltar a agarrar a minha vida, fazer o jantar, varrer o pátio, pegar no saco do lixo e planar levemente até ao contentor, como se nada fosse, que não é”. A mulher fica paralisada. E na cara de repente tem toda a compaixão do mundo. No sentido mais puro, de “sofrer com”. Recomenda-me gel para cavalos, parece estranho, mas também funciona em humanos, garante-me, massajar suavemente na zona inflamada, primeiro aquece, depois é uma frescura mentolada, como abrir uma janela nas costas, imagino, é deixar o ar entrar e lá se vai a dor.
Registo.
Depois de quinze dias a meter comprimidos e cápsulazinhas coloridas, a sentir-me um Damien Hirst andante, portanto, decidi abraçar as terapias alternativas. Com trinta agulhas espetadas nas costas e braços, iniciei a minha transformação em regador. As ventosas fizeram sentir-me particularmente bem. A princesa da marquesa. Amassar, amassar, e deixar o pão levedar. Vou poupar-vos a descrição das diferentes terapias que tenho experimentado. Não têm grande interesse. O que interessa é que funcionem, e temos feito alguns progressos, eu e o meu corpo e a minha mente. Como dizemos aqui “na tá pior”. Sei bem que não é este o sentido, mas as palavras são mesmo assim, às vezes é preciso abraçar-lhes a literalidade. Tem sido uma cena cooperativa. Enquanto a força do coletivo não se manifesta até ao fim dentro de mim, a luta continua.
Por estes dias, agradeço os “meus filhos, meus amigos, meus discos e livros, e nada mais” (eu sei, eu sei, estou sempre a repetir-me). Agradeço também a bomba de calor (?) que instalámos na primavera e que nos tem ajudado a suportar o apocalíptico mix de bafa Alentejana mais Antropoceno com distinção. Agradeço o Pavese, o último livro da Ali Smith, a voz da Callas. Eu disse Callas? Disse, pois. Encarnei-a com o meu amigo Barão há uns dias num saneséte na praia. Com a serra ao fundo, a mais linda adormecendo no mar, assassinámos felizes o Sansão e Dalila e brindámos à vida. Não chegando aos calcanhares da mexicana, nem do Barão, nem de todos os seres que sofreram e sofrem e eu amei, sou Frida, e sou Diva. Frida Callas, é para o mundo que grito enquanto o Sol se põe: “réponds à ma tendresse”.
Três coisas que valeram a pena
O som de Loyle Carner: em preps para o Couraíso, vou ouvir Loyle Carner e descubro que tenho uma alma grime. Tenho esta tendência para ouvir as coisas em loop, por isso têm sido dias bem cheios de belíssima e serena sujidade. Carner tem 28 aninhos, não s’acredita. Esteve em Montreux e vai ao Minho.
A Barbie: Não vi o filme, por isso estou à vontade para dizer disparates. Quando estudava cinema em NYC, fiz uma cadeira com o Slavoj Zizek que se gabava de fazer críticas de filmes sem os ter visto (já sei, já contei). Não precisava. Já conhecia a cantilena. Não sei se Barbie é o tipo de filme que se presta a isso. A realizadora, afinal, inspira, pelo menos, o benefício da dúvida. A mim bastou-me ver Lady Bird para me inspirar confiança, até. Mas a pergunta que me faço é: o que é que leva a Mattel a patrocinar um filme alegadamente feminista, que toca no patriarcado, nas questões de género, e, porventura, oh la la, no racismo! Que isto anda tudo ligado, já sabemos, chama-se intersecionismo, e enquanto não abrirmos verdadeiramente os olhos, oh wokes do mundo, e acendermos todas as ligações, até vermos que é de uma só coisa que se trata, vai ficar tudo na mesma.
O capitalismo é exímio a manter-nos distraídos. Alimentando a moca global, e alimentando-se dela, é assim que sobrevive e prolifera. E o último grau (?) da perversão, da pornografia, é vê-lo cavalgar, rampante, as bandeiras que agitamos na ilusão. É assim com o greenwashing, esponjinha fofinha e orgânica que passamos com delicadeza sobre as nossas desajeitadas consciências enquanto, ooops, comemos morangos em novembro ou metemos o flight shame no necessaire e viajamos para as Fidji porque não aguentamos mais a pressão. E é assim, pelos vistos, com tudo o que estruturalmente importa, e fica exactamente na mesma porque estamos só a arranhar a crosta. A estrutura, essa, mantém-se intacta. Reforçada até. Com a algibeira a rebentar de notas cor-de-rosa, a Mattel até fazia uma Barbie Pasionaria. E é assim que uma ídola como Jane Goodall, espertíssima e lindíssima cientista e activista, acede a manter a venda nos olhos, e marketiza uma Barbie Goodall (de plástico reciclado que de outra forma terminaria nos oceanos, bien sûr) para inspirar as criancinhas (girls) a serem o que quiserem ser. Até cientistas, que descaramento! Eu até percebo a ideia de combater o mal infiltrando-se nele (será o advento da Barbie Cavalo de Tróia?). Mas melhor que plástico reciclado é plástico nenhum. A Mattel não faz um filme “progre” para mudar o mundo. A Mattel faz um filme “progre” para manter o mundo como está.
A revista TOO MUCH, com o adorável subtítulo “Magazine of Romantic Geography” é assim uma coisa linda. Belíssimos ensaios fotográficos, e textos sumarentos, daqueles que abrem olhos e coração e tudo, e aos quais até se perdoam as gralhas. Só a descobri ao número 9, dedicado ao Sagrado, e que me pareceu mesmo na mouche, dado o contexto da Papal visita. Enquanto os alfacinhas fogem em debandada, eu leio, eu leio.
E um texto
(Poeminha-homenagem que escrevi durante o confinamento, perna ao alto. Agora o maléolo já está curado, e o coração faz notáveis progressos. Pessoas que já o leram, desculpem o repeat)
Kahlo, não calo
Sendo óbvia a
Frida, frida
Procuro-a
Por detrás das sobrancelhas
No forro do espartilho
Dentro daquele olhar selvagem
Aquela beleza toda
Percorro a minha estante
Os dedos trémulos
Em desequilíbrio
Fazendo pontas na canadiana
Procuro aquele livro onde ela se descoseu
Cheia de desenhos
Cores
Palavras
Revelando o seu amor
a sua ferida,
Lambendo-a.
Aquele Diego sempre me pareceu um monstrozinho
Odioso, exoftálmico
Teria uma tiroide excitada
Ou apenas um ego desmesurado
Que lhe saía pelos olhos?
Felizmente outros,
Que agora não lembro
Os de Trostky
Brilhantes atrás das lentes que eram aros
Como tartarugas
De uma transparência alada
Lhe deram a volta, Frida
A puseram a dançar
Saias
Folhos
Flores
Jarras derramadas
Encarnadas.
Eu não sinto a dor de Frida
Não chego lá
Não tenho um ferro atravessado na carne
Não moro na cama
Não sinto o amor sacudir-me
Cuspindo-o do corpo
Depois do naufrágio
Soluçando algas
Embrenhadas em tranças
Para depois recuperar
O fôlego
Tinha saudades destes seus textos, que tanto me ensinam. Obrigado, Madalena.
Para as dores de costas recomendo yoga (com a minha professora), para as de alma tudo o que estiver à mão de semear. É que belo texto! Um abraço, Madalena!