#31 Mind the Gap
“Isto é material do regional”, diz o homem. O homem é o operador de revisão e de venda, vulgo “pica”, para algumas, “picas”. Tem um sorriso cavalar. É genuinamente simpático. Uma satisfação, uma leveza, marimbando no seu pequenino poder, esquecendo que lá fora estão 35 graus e que provavelmente leva o dia todo nas costas. Vendo-me assim agitada, ele deve perguntar-se por que raio me interessa tanto a proveniência do comboio. Não a origem (Oriente): a linhagem.
Não é interesse, é estranheza. Só quero assegurar-me de que este é o comboio certo, voltar a casa. Hesito antes de entrar na geringonça grafitada. Mas este é o Intercidades? Vai para Évora? Sorrio. “Isto é material do regional”, arruma.
É isso. Um IC disfarçado. Camouflage. O fundo, a forma.
Isto tinha pano para mangas, mas agora só quero chegar a casa.
Poucaterra, pouca terra, tanta terra - o Alentejo é um terço de Portugal, roughly - dou por mim num mundo completamente novo: sentada numa cadeira cor-de-laranja na carruagem desengonçada, e ainda assim vibrante, ponho-me a pensar nisto: a minha vida é o comboio.
Chão de linóleo imitando terrazzo, painéis de plástico azul-petróleo, braços dos assentos também. Isto é um comboio super eighties, isto é uma carruagem Taveiresque, isto é as Amoreiras em movimento, e não fosse a assimetria (filas de três lugares de um lado, corredor, filas de dois lugares do outro) seria o set perfeito para um Wes Anderson à beira-mar plantado (a propósito, vi o último, e ao contrário da Little White Lies, não amei.)
Comigo é assim: a vida está sempre a fazer-se. Quando se dá por ela, um dia acorda-se transformada em mulher-pêndulo. Tem sido uma transformação progressiva. Felizmente amparada numa enorme, brilhante e muito macia teia de amor.
Há sete anos larguei Lisboa para abraçar a vida tranquila. No Alentejo, fiz a minha casa e encontrei o meu lugar (o lugar onde gostava de ter nascido, mesmo havendo quem não acredite). E com toda a beleza, nem sempre tem sido um passeio pelo parque, nem sequer pelos lindos campos floridos desta terra, cheios de cardos e lírios, e estevas brilhando ao sol, e papoilas perdidas. No papo levo milhões de tropelias, alegrias. Algumas dorzinhas também. Tudo agradeço.
Mas agora. Agora a vida puxa-me de novo para a cidade, e eu vou. Metro-boulot-dodo, e eu vou. Amor - de mãe, e de pai e de tudo - e eu vou. Acordo no Alentejo, e adormeço à frente do Tejo, e onde quer que esteja, ao pé de mim há sempre uma estação, uma linha de comboio, um ponteiro, uma plataforma, uma janela. E lá fora há um travelling arrastado, ora lento e compassado, ora quase vertiginoso, agitando-se como um biberon.
E eu, que sempre adorei comboios - e estações de várias feições, e apeadeiros e lugares assim povoados e abandonados, e outros pelo meio que não são (uma) coisa nem outra - começo a encontrar-lhes manhas e até alguns defeitos.
Como diz o meu companheiro da cadeira de trás:
Só acertam no atraso.
Ámen.
Rapidamente faço ligações, e nem preciso de validar outra vez o título de transporte. “Comboios rigorosamente atrasados”, por exemplo, seria um bom título para esta existência entre plataformas. Penso nas estações andantes - nas linhas, nas entrelinhas - e misturo-as todas como quero, com ordem, sem ela, aqui quem manda é o coração: um lenço amarelo em andamento, na despedida ao ralenti; o Douro correndo por baixo de velhos carris; a cinemática Grand Central; um abraço, um rodopio, toda a tontura e todo amor em Sãbento; os Passos Perdidos de Paulo Varela Gomes; uma abertura de Calvino:
Alzare gli occhi dal libro (leggeva sempre, in treno) e ritrovare pezzo per pezzo il paesaggio — il muro, il fico, la noria, le canne, la scogliera — le cose viste da sempre di cui soltanto ora, per esserne stato lontano, s'accorgeva: questo era il modo in cui tutte le volte che vi tornava, Quinto riprendeva contatto col suo paese, la Riviera.
ou em Português:
Levantar os olhos do livro (ia sempre a ler, no comboio) e reencontrar peça a peça a paisagem - o muro, a figueira, a nora, o canavial, o rochedo - as coisas vistas desde sempre e em que, por ter estado longe delas, só agora reparava: este era o modo em que todas as vezes que lá voltava, Quinto retomava o contacto com a sua terra, a Riviera.
Agradeço o percurso serpenteante até Casa Branca, mais uma manhã rebentando, azul, malva, rosa. A estação está serena, sem sono. Fresquíssima.
Um pêndulo hipnotiza, um pêndulo afasta-se e volta, um pêndulo, em movimento, depende sempre de um ponto fixo. É eixo e energia. É a vida.
Três coisas que valeram a pena
Primavera: Sete anos depois, voltei ao Primavera Sound para ver TV On The Radio, a minha bande à part do coração. Aposto que o concerto foi munta bom e só eu não reparei. Na verdade, para mim seria sempre bom porque eram os TVOTR, e um gigante chamado Tunde Abimpe em cima do palco, e a Palestina em cima do palco, e nos nossos corações e punhos também.
Agora vou fazer de velha do Restelo (cada vez mais, e literalmente mais): é impressionante como são previsíveis os festivais actuais. Perdeu-se a explosão, a espontaneidade, o inesperado. É tudo programado (= controlado) ao pormenor. Mal fecham os microfones, no fim do concerto, e dá-se a debandada geral. Muito obediente e dentro da caixinha, o público encaminha-se para o show seguinte (porque é mesmo isso, a vida é um show). Andamos de palco em palco tomadas por um FOMO terrível, que só não é paralisante porque estamos sempre em movimento. Ainda não acalmámos o coração depois de uma bela performance e já estamos mergulhadas no universo seguinte. Sendo que alguns cartazes, de alguns festivais, parecem mesmo encontros de universos paralelos (Vampire Weekend e Sertanejo? Podia). Mas há mais. Coberto por um enxame de marcas, o recinto empobreceu. É um mix de centro comercial a céu aberto e feira popular sem povo. Velha do Restelo, prometo que não vou mais a um festival.
Zaho: Nunca mais vou, claro, até passar os olhos pelo cartaz de Paredes de Coura, onde este ano aterram os Vampirinhos que mencionei aí em cima, a linda Sharon, muito Air e Zaho de Sagazan. Esta miúda é incrível, escapa a todas as etiquetas, acumula performances lindas e livres com esta, que já é um clássico, e se fosse budista acreditava que é uma reencarnação de Brel no século XXI. Não consigo escolher uma só faixa, mas esta Vienne é especialmente bonita (e Breliana).
Um livro: A minha amiga Rê foi a primeira pessoa a estender-me a mão quando cheguei ao Alentejo. Ela não sabia, mas quando me sentei naquela mesa comunitária, sem conhecer ninguém, precisava muito disso. Ela não estendeu a mão, na verdade. Estendeu o jarro, e encheu o meu copo. A minha amiga Rê é artista (ela diz assim: “árrtxista”, porque ela nasceu no Brasil) e faz coisas lindas. Desenhos, esculturas, filmes, poemas. Fez milhões de livros e um dos mais recentes, chamado Querido Burle Marx, é uma carta de amor ao paisagista brasileiro que projectou jardins para (todas) as pessoas, não só para algumas, e amou as plantas, e mergulhou na floresta e desenhou calçadas no Rio (tudo isso está no livro da Rê, que tem desenhos lindos, e muita poesia - de comer com os olhos - e os seus momentos Munari, com sobreposições maravilhosas). É muito lindo que a arquitectura e a botânica se casem na palavra planta. É muito lindo, e um privilégio, rodear-se de objectos criados por pessoas de quem gostamos muito.
Uma nota: A Promenade tem estado adormecida, porque a vida mudou tanto nestes meses que não consegui espaço nem tempo para mais. A todas as pessoas que acompanham esta news, obrigada por ainda estarem aí. Vinte e cinco tem sido para mim um ano todo movimento, mudança e aceleração. Eu olho o mundo e a humanidade e esfrego os olhos e afago o coração. É nestas alturas que é preciso resistir, vocalizar, manifestar. Amar a arte. Amar.
(a propósito, leiam este curto texto que o Tiago Rodrigues publicou no Instagram, onde se passa o mundo.)