#5 Abril a pestana
Acordei relativamente cedo depois de uma noite descansada. Preparei um belo brunch burguês para os meus filhos, com panquecas com mirtilos (o meu pai diz que não sabem a nada, não sabe o que perde) e geleia de agave (o meu pai nem sabe o que é, não perde grande coisa), e Darjeeling de supermercado porque acabou o blend que guardava numa das latas, e a aqui não há Companhia Portugueza ao fim da rua, nem Casa Pereira que nos valha. Nem aqui nem em lugar nenhum, infelizmente extinta.
À meia noite em ponto, nem coisa nem menos coisa, romperam os foguetes e o céu manso incendiou-se. Os fogos de artifício, mesmo na noite morna, são sempre uma festa e um assombro. Estalaram estridentes, afugentaram pássaros, assustaram-me o cão, e dentro de mim estoirou a revolução.
Ainda não acabou.
“A liberdade é uma luta constante” diz a bravíssima Angela Davis,
E é por isso que é preciso
ABRIL a pestana,
e aqui não dá para adormecer, feitos cigarras ou tartarugas (animais ociosos amorosos, que muito prezo, atenção)
Sempre não é garantia, não é eternidade.
Sempre é urgente e é presente.
47 anos do 25 de abril. Vou pesquisar no Google, aquele muito fofinho que não por acaso tem óculos e está sempre a olhar para nós, e descubro que Salgueiro Maia morreu com 47 anos. Os anos que Abril tem.
Ponho-me a meditar no olhar dele. Acontece com frequência. Não são os olhos, não. É o olhar.
Procuro as palavras:
Claro
Largo
Límpido
Sereno
Cristalino
O meu pai tem aquela palavra das biologias:
Hialino.
Rio-me.
Mas o olhar de Salgueiro Maia é demasiado transparente para tanta complicação.
É só um olhar para ficar ali. A olhar.
É o olhar que eu queria verter sobre o mundo.
Mais do que os cravos e as Grândolas e os vampiros, o 25 de Abril a que não assisti – cheguei atrasada - está todo solto naquele olhar.
É um lugar-comum, é. E depois?
Do adeus,
Sou uma turista das revoluções e isso até pode ser uma vantagem porque assim posso romancear à vontade. Eu vivo Abril e Maio em souvenir imaginado, e não vejo mal nenhum nisso. Cada uma faz o que pode.
Então vou buscar o Fernandinho, que me mandou o meu querido amigo Carlos, que não precisa de imaginar as revoluções, e penso se será possível ser tourist para trás:
(...)A vida é uma viagem que uns fazem em caixeiros-viajantes, outros em navios em lua de mel, e outros, como eu, em tourists. Eu atravesso a vida para olhar para ela. Tudo é paisagem para mim, como para o bom tourist — campos, cidades, casas, fábricas, luzes, bares, mulheres, dores, alegrias, dúvidas, guerras (...). Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas, tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único destino digno dum poeta.
Ai.
Descubro na pesquisa que aquela “foto icónica” do capitão sem medo afinal foi uma pose. Se aparecesse na Hola!, seria “un posado”. O fotojornalista Alfredo Cunha (20 anos em Abril de 1974) chegou atrasado à Conferência de Imprensa no Largo do Carmo. Salgueiro Maia, que podia ser puro, mas não tinha nada de tonto, pôs-se à frente do chaimite e olhou para a câmara, click click click. “Tá bom?” Terá perguntado. Pois claro que está, está óptimo.
Puro, poser, o ser humano nunca é uma folhinha plana e previsível. De outra forma, não teria graça. Neste olhar do capitão de Abril eu não vejo só tranquilidade. É um olhar resoluto, sim. De quem dá o peito às balas, mesmo quando há uma fragata indecisa, flutuando no Tejo escancarado à sua frente. Mas nessa serena determinação, nessa confiança toda, nada está garantido. Há um fio frágil que pende, que balança. A liberdade é uma luta constante. Até na firmeza há incerteza. A liberdade é uma falésia.
3 coisas que valeram a pena
1. A pensar em turistas, claro que me lembrei dos Saint Germain da minha juventude, que ouvi até à náusea. Mas o hoje o espírito é outro, e a música que tenho andado a ouvir é este maravilhoso Por Este Rio Acima (1984) do Fausto sem capitão (também adoro, que conste) que ouvi em repeat, não na adolescência, mas um pouco mais atrás, no ano em que o meu irmão (que vai ser pai) era bebé. Não consigo escolher uma só música (Lembra-me um Sonho Lindo?), mas a vibração deste Navegar, Navegar parece-me do melhor:
A pensar em náusea, claro que me lembrei de Sartre, mas sobretudo da Simone:
A newsletter da Patti Smith aqui no Substack . Gosto tanto dos poemas dela no Instagram, que começam sempre assim: THIS IS. This is é a vida. E agora em versão newsletter. Iupiiii. Este post sobre a dança como catarse é muito fixe. Ponho-o aqui a pensar em todos os meus amigos queridos que morrem de saudades dos concertos, festivais e pistas de dança desta vida. A minha cozinha é um grande dancefloor. Os meus filhos que o digam.
E antes de terminar esta Promenade, que tenho um peixinho assado à espera: obrigada por estarem aí e pelas mensagens que mandam e pelo entusiasmo todo que me transmitem. É muito bom ter-vos aí. É muito importante. Estou-vos muito, muito agradecida.
Sempre!
E um conto
(a última parte de Nina, mesmo a calhar: Navegar, Navegar. Quem ainda agora aqui chegou pode ler para trás, para apanhar o fio à meada.)
Antes de se juntar à tripulação da Pinta, que zarpara de Sevilha rumo a Santo Domingo em 1992, para comemorar os 500 anos do frutuoso equívoco de Colombo, Joan não sabia o que fazer ao tempo.
Tinha 22 anos e era a primeira vez que deixava Barcelona. A primeira e a última, porque desde então nunca mais regressara verdadeiramente à cidade que o vira nascer. A partir daí, andara sempre de navio em navio, de veleiro em veleiro, alguns anos com a equipa da Greenpeace, há alguns anos por sua conta e risco, levando e trazendo barcos, cruzando o charco e os sete mares, são dois para lá, dois para cá.
Agora tem quase 50 anos e não se lembra de quantas vezes atravessou aquele mar. Com Michel, o marinheiro libanês que o acompanha na travessia, espera conseguir levar a Nina até Miami. É um bonito barco, 14 metros de elegância e inconstante aprumo.
A bordo de um barco, é preciso ter cuidado onde se põe os pés. Com a cabeça também. Pés, cabeça, cabos, velas, permanentemente, uma consciência corporal inaudita. Sempre presente. No mar, Joan aprendera a agradecer por todas as pequenas coisas que dava como garantidas. Um corpo, para começar. Que lhe permitia levantar-se, preparar um café no fogão dançante, ou um batido de fruta congelada, uma torrada com azeite e tomate e alho, nada de doces pela manhã.
Também o dia, agradecia. O sol que nascia pontualmente, independente de tudo e no entanto infinitamente generoso, vertendo a sua luz e o seu calor pelo mundo, dissolvendo a escuridão, apagando as belas estrelas, aquecendo os corpos os campos os corações. As ondas do mar também.
A bordo, Joan podia ler muitos livros em muito idiomas, mas a maior parte do dia passava-a a observar. Contemplando, em silêncio. Sem outra companhia para além dos seus pensamentos, ou, se por acaso estivesse mais meditativo, a ausência deles, o espaço entre eles.
Um barco é tramado. Num barco não há muito espaço. É preciso escolher muito bem quem viaja connosco porque não há lugar por onde escapar. Não há portas que se abram para outros caminhos, nem janelas por onde fugir. Há escotilhas, e é bom que estejam bem fechadas.
Mas um barco é uma ficção diabólica. Porque parecendo que falta espaço, há imenso. Porões e alçapões, é evidente, mas também milhares de trapas, buracos, gavetas, portinholas, a direito e em fole e por cima e por baixo. Quaisquer insignificantes centímetros cúbicos são uma dádiva e uma graça. Um barco é uma pessoa muito interessante: há muito mais interior que exterior. Debaixo dos degraus, por cima dos beliches, debaixo das camas, nas esquinas, nos cantos, em todos os ângulos: espaço.
No mar, Joan aprendeu a esticar o espaço, aproveitando-o, e a encurtar o tempo, dividindo-o. Os dias eram segmentados em blocos, manhãs, tardes e noites, e cada troço de oito horas era vivido como um novo dia, inteiro e fresco, com coisas para fazer, momentos de descanso, alturas em que não se passava nada, horas em que acontecia tudo.
Agora navegam rumo aos Açores, onde farão uma paragem cortando a travessia em dois. Lá fora o mundo parou, as praças desertas, as ruas vazias, a desolação, o desnorte. No mar, tudo na mesma. Navegam a 30 nós e que beleza. Mar e mar e mar, e o barquinho a navegar, sulcando as ondas, proa empinada e leve, subindo e descendo compassada, deixando trilhos de espuma fresca à ré. As únicas notícias que têm chegam pela rádio, esporadicamente. De resto, não há notícias, não há jornais, não há notificações. Há o ruído rítmico do mar. Há o vento a bulir nas velas. O motor está adormecido há dias, os ventos sopram favoráveis, como nos livros, navegam à bolina e o barco quinado avança sem medo.
Já o dia está a querer despedir-se quando avistam terra ao longe. Três ilhas levantadas no meio do mar. Vão atracar na costa norte do Pico, ainda têm algum mar pela frente. Deixam o Faial a bombordo, rumo ao Pico. O céu está agora cor de rosa, algumas nuvens violetas esticam-se como jacarandás de ramos abertos. Não precisam de falar, já cada um sabe o que tem de fazer. As velas estão recolhidas, o motor burbulha. São Jorge, ao fundo, é um dragão adormecido. Já na boca do porto, cruzam-se com um veleiro imponente, três mastros impossíveis. Joan lê-lhe o nome, primeiro no alfabeto latino, depois em letras árabes. Zaraf. Michel explica-lhe que na sua língua aquela é uma girafa encantadora.