#15 Cringe
Esta semana fui a Lisboa buscar um cão. Nos preparativos da viagem, liguei à minha mana na terra e perguntei-lhe se podíamos jantar. Ela perguntou-me o que me levava à capital a meio da semana, e eu respondi que ia a uma inauguração, e tinha uma reunião, e ia trazer um cão. “Outro???” veio de lá. E nessa altura o telefone dela já estava em alta-voz, estava a fazer o jantar e tinha-se juntado o marido à conversa. Os dois queriam saber porque precisava de outro bebé na minha vida, já de si bastante preenchida para me meter em mais sarilhos.
Eu respondi que deviam ser as hormonas, a gravidade pesando, e lancei:
“Preferem que tenha um filho?”
- CÃO! CÃO!
responderam em uníssono, e eu confirmei mais uma vez como são mesmo feitos um para o outro, atropelando-se nas certezas (poucas), e como são mesmo meus amigos.
Antes de ser mãe, quando me perguntavam quantos filhos queria ter, eu respondia sempre: três. Não porque tenha sido a conta que deus fez, mas porque este número, que põe em relação extravasando a dualidade de tudo, me pareceu sempre a encarnação da harmonia. Não é nada original, eu sei. Podia ir por aí fora: o triângulo, a perspectiva renascentista, a maçonaria, a trindade sem tremoços, os trios de Jazz, os tercetos, e mais um rol de equilíbrios ligeiramente fora de pé, desacertados.
Mas deus baralhou-me as contas, e acabei por pôr no mundo apenas dois filhos. A pergunta seguinte, previsível, que acontecia sempre que de barriga inchada começavam as adivinhações (Ah, isso parece um pepino, tens aí um menino. Ah, está redondinha, vem daí uma menina.), era: e o que preferes, menino ou menina?
Ultrapassando o óbvio – prefiro que seja saudável, e assim, em princípio, já é meio caminho andado para ser feliz – eu respondia “Tanto faz, meninos e meninas, mas se for para ter todos do mesmo sexo, então que sejam todos rapazes”.
Aí, deus não pestanejou e concedeu-me o desejo. E não havendo três, também não houve entediantes casalinhos para ninguém. Saíram-me dois varões, e que beleza! Por isso, volvidos 18 anos do nascimento do primeiro, e 13 do segundo, aqui estou eu, enfrentando a quarentena numa casa de província de janelas azuis, rodeada de pilinhas.
São várias. As dos meus filhos, e as dos meus cães (agora são dois). A nossa necessidade de maternar é impossível de satisfazer.
No outro dia, alguém que muito estimo, e que ainda não tem filhos, perguntava-me qual seria a melhor forma de educar a prole: com muita disciplina ou muita permissividade. Eu fiz uma pausa, procurei, procurei, e comecei por dizer que isso de educar os filhos é um bocadinho uma ilusão. Melhor deseducá-los, os avós que os eduquem. Desde que nascem, talvez até desde que estão na barriga das mães, eles são indivíduos. Isto é, não nos pertencem. São inteiramente outro. Em certa medida, são até estranhos. Ou seja, mesmo dando-lhes todo o amor do mundo, transmitindo-lhes os valores e ensinamentos que achamos irão prepará-los, protegê-los, ou pelo menos poupar-lhes algum sofrimento, não os moldamos verdadeiramente. É sempre infinitamente maior aquilo que nos escapa. A seguir, socorri-me de um conselho do meu tio Pedro, que não me canso de repetir a mim mesma: “Com os teus filhos, faças o que fizeres, procura fazer sempre o mesmo”. A mesma coisa certa, o mesmo erro. Assim, farás asneira de certeza – é inevitável – mas pelo menos não os baralhas. É muito importante saber com o que se conta. É a partir desses limites, certos, errados (e o que é isso?) que estabelecemos a nossa posição no mundo. Por isso, limites (que lhes impomos, que nós próprios carregamos em nós, porque somos humanos). Por isso, também, permissividade. Por isso, o melhor de nós e até o paradoxo, mas sempre o mesmo, a constância passageira no incessante fluxo do mundo.
Corta para uma quinta-feira à noite na cozinha da casa de janelas azuis. Com o dia nas costas, começamos a preparar o jantar às 20h45. Um caril? Carbonara express? Sai um caril.
Um copo de vinho e a cebola cortada em finas tiras. Nada de óleo de palma, que aberração. Azeite virgem alentejano, e que se lixe. Peço ao mais novo que anime a malta, põe aí um som. E ele põe, talvez uma playlist chamada “God Marley”, talvez um excerto da banda sonora de “Sex Education”, com o Rod Stewart, verruguinha brilhando, a perguntar se o achamos sexy, então não. Talvez o Kurt a chamar-nos: “Come / As You Are”. Enquanto desfaço o pó de caril no leite de coco, o meu corpo chama-me. Começo a dançar, remexo o tacho, molho os lábios no Douro, e lá vão os bocadinhos de courgette saltitando para dentro do molho curcumado.
Matcha, o louCão, olha-me com espanto, sentado com a cabeça ligeiramente inclinada, como quem espera um treat, mas não dura muito. Começo a soltar-me, colher de pau na mão, pingando o chão, e o cão acompanha-me, desata a ladrar, mexe-se ele também, todo incompreensão agitação. Sebastião ri-se nervosinho. Pára o cão, pára o cão, então não vês que tem na cauda um valente chicote. A criatura – a humana - não pára de rir: “Mãe, pára, isso é cringe”. Isso é quê? E abano a cabeça, olhos fechados, braços no ar, “Come on sugar tell me, do ya think I’m sexy”.
Cringe. Possivelmente no top 10 das palavras mais utilizadas pela Geração Z. Praticamente, diria o Sebastião. Crin quê? Baixamos o volume. Estou farta de ouvir a palavra, pelo que percebo aplica-se a muitas situações na minha vida, pelo menos aos olhos do meu filho mais novo. Mas o que é isso afinal, Sebastião? Ele abre os berlindes, mais um risinho nervoso. Isso és tu, mãe. Sou eu? Yá.
Então ele explica-me. “Cringe” é uma espécie de estranheza (awkwardness?). Uma pessoa que, voluntariamente ou não, se coloca numa situação confrangedora. Parece que abundam os TikToks cringe, e há perfis de Instagram inteirinhos dedicados ao cringe.
Eu sou super cringe, claro. Ainda mais porque até agora não tinha consciência de o ser. Antes de o Sebastião me explicar, nem sabia o que era. Ao longo do dia, tenho vários momentos cringe. Quando acordo, devo ser bueda cringe, mas aí não há nada a fazer. Na cozinha, a dançar Rod Stewart, ou a coreografar o Flashdance, ou fazer de Pongo – Wegue Wegue – ou de Julinho a mandar a polícia para aquele sítio. Ao volante, se me der para cantar loucamente o Go dos Chemical Brothers. Também quando ensaio um penteado, digamos, se decidir pôr um lenço de minhota na cabeça como um turbante africano. Ou quando me preparo para sair porta fora de calças de fato de treino e ténis Vans de xadrez e um casaco pura lã virgem com um buraco no cotovelo e um gorro amarelo com um pompom dançante lá no cume.
Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é cringe.
Fui ver ao Google, mas a explicação do Sebastião é muito melhor: “Mãe, ´cringe´ é quando a vergonha do outro bate em ti”. Uma espécie de ricochete, mas para fora? Não, é vergonha alheia mesmo. Uma sensação que te invade, uma espécie de comoção (de mover em conjunto) com um travozinho de compaixão (de sofrer em conjunto), eu sei lá.
Reflito. O cringe é belo. Eu gramo mesmo ser cringe. O cringe (que os outros vêem em nós) é a expressão mais pura da liberdade de sermos o que quisermos. Isso é das coisas que melhoram com a idade. Felizmente são muitas. “Eu faço o que eu quero”, diz a Pongo. Eu também. Não quero saber se há um hiato entre a imagem que tenho de mim e a imagem que os outros vêem. Aliás, eu gosto desse espaço. Dessa consciência-inconsciência. Eu gosto de dançar como se não houvesse amanhã, como se ninguém me visse, como se o mundo inteiro me visse e eu me estivesse marimbando. Que estou. Haverá outra forma de dançar? Não se dança para olhos que se escondem no escuro.
E assim dançando, vamos andando. Uma mãe com a mania que é rainha, um amoroso agrobeto com a mania que é príncipe, um rebelde fofinho com a mania que é cavaleiro, um LouCão aparentemente sem manias, um cachorrinho espevitado com a mania que é o dono disto tudo. Em teoria, somos um conjunto finito formado por elementos díspares, mas em harmonia: mulher adulta, jovem adulto humano, teenager, jovem adulto cão, bebé cão. Mas na verdade, somos um conjunto infinito. Podemos ser o que quisermos. Até adolescentes que já passaram os 40. Até cringe, mano.
Três coisas que valeram a pena
1. “Se não sabes, inventa”. É uma frase que se repete algumas vezes (é capaz de ser só uma, mas o filme está cheio de ecos, por palavras, por imagens) na primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos “A Metamorfose dos Pássaros”. A frase é bela, o filme belíssimo. Eu vi-me lá. Vimo-nos todos, desconfio. E por isso o filme tem ganho tantos prémios e até vai aos Oscars, representando Portugal, se é que isso interessa alguma coisa. A avó de Catarina, que na mão segura uma das ponta do novelo que o filme desenrola, teve 7 filhos. A minha avó teve 9. E eu, que não tive um avô na Marinha – era agrónomo, o pai dos 9 – vi lá tanta coisa nossa. Por isso o filme toca e ressoa. Para que serve a arte senão para nos mover? Atenção, este filme é de uma grande doçura. Não nos tira do sítio. A mim não me tirou. Religou-me. Mas é isso que é bom. Está cheio de imagens esplendorosas, de referências (Melville é uma delas, saborosíssima. Também lá está Noemi Jaffe. E muitas outras). Filmado em 16mm (li algures) começa pelo óbvio, meio narrativo e até literário, e vai longe. Senti o filme como uma suave montanha-russa. Como se entre o início e o fim (o filme é longo) houvesse uma queda, e eu momentaneamente me perdesse. Talvez porque o filme contrarie a aceleração do mundo, queremos às vezes que corra mais rápido. Não sei se não haveria partes que podiam ter saltado fora. Não há sempre? Se é difícil editar um texto, quanto mais um filme. O que deixamos fora, o que retemos? O que quisermos. Nos filmes, como na vida. Ouvi dizer que era um filme sobre o luto. Eu não vi um filme sobre o luto, a não ser na medida em que o luto é parte substancial da vida. É um filme cheio de ecos, de reflexos, de correspondências. Começa precisamente aí: na correspondência entre a mãe – em casa, cuidando os filhos - e o pai – oficial da Marinha - mas corre, se corre, corre como as ondas do mar. Partindo da história da família da realizadora, é um documentário, mas também é uma ficção (se todos os documentários são também uma ficção? Provavelmente. Mas este é mais. Se não sabes, inventa. ). É aí que o filme dá o salto. É aí que voamos. Algumas imagens aleatórias-não-aleatórias que guardo (porque quero mergulhar de novo, porque me perdi em tanta poesia, e agradeço): Teresa a secar o cabelo, as folhas das árvores em reverse, os espelhos (filme reflexo), a criada cortando os legumes e a sua cabeça, a revelação do parto, as vibrantes naturezas mortas, um cavalo marinho e uma orelha, duas orelhas, uma trança, um ensaio de beijo parado, a natureza irrompendo pela casa, a natureza imperturbável, imparável, que nos há de sobreviver. Enfim, uma beleza. Quem ainda não viu, vá ver.
2. Os Chemical Brothers. Não sei se alguém teve a ideia de mandar este som aos senhores e senhoras da COP26, mas era mega. Uns plantam árvores, como neste projeto lindo chamado Além Risco, de que hei de falar, e outros assinam compromissozinhos. Não se podem pedir pêras à macieira. É preciso plantá-las.
3- O John Berger. Andei a ler este livro lindo chamado “Porquê olhar os animais?”. É um pequeno passo para o homem, um grande passo para começarmos a partir o antropoceno. O livro está cheio de espantos e descobertas. A cabeça de Berger é f..., e a sua escrita, límpida e incisiva, uma beleza. A tradução, velocíssima e leve, é um mimo. Não marquei as partes mais importantes. Vou ter de ler outra vez, com renovado prazer. Gosto desta:
Chovia levemente: as árvores estavam absolutamente imóveis. E lembro-me de ter pensado, enquanto guiava nas curvas fechadas, que se pudesse definir ou compreender a natureza da submissão das árvores, poderia também aprender algo sobre o corpo humano – pelo menos sobre o corpo humano quando amado. A chuva escorria das árvores. Uma folha é tão facilmente agitada. Uma brisa basta. Ainda assim, nem uma folha se movia.
E um conto
Continuo sem nada de novo, este já passou. De maneira que abri a gaveta e saiu-me esta Janela.
Eu não sou mulher
De ficar à janela
A ver a banda passar
O gato lambendo o pelo
A floreira da frente pingar
O vaso derramado
Eu sou glicínias
Serpentinas
Sardinheiras aos saltos
Pétalas irrompendo das unhas
Para pedacinhos de céu
Eu não sou mulher
De contar cerejas
De olhar para as estrelas
E ficar a ver navios
Eu vejo a luz e o lume
A transparente escuridão
Eu estendo a mão
E apanho os cometas que quiser
E como-os
Regurgito-os
Se tiver alguma coisa
A clarear.