Antes que acabe este joli mois de Mai, demos um passeiozinho pelo campo. Aqui onde vivo, o campo está lindão, mas como diz a Mercedes Sosa, e como talvez dissessem os mestres Zen, se porventura tivessem nascido para estes lados do mundo, todo cambia.
De maneira que a Primavera, que ainda agora aqui chegou, vai abrindo espaço para o Verão, e as flores, ontem tão lindas, viçosas e perfumadas, vão secando, despreocupadamente definhando, e libertando as sementes que cairão na terra, e germinarão, e criarão raízes, mesmo frágeis e transparentes, para que um novo ciclo rebente e a circularidade se exprima, toda redonda e certa.
Eu vi as estevas florir e as rosas bravas, e as papoilas, e olhando para elas pensei: “On spontane!”, tendo, no entanto, a consciência de que também isso é uma ilusão. Elas não espontaneiam coisa nenhuma, elas estão programadíssimas, elas sabem muito bem o que têm de fazer e não precisam que ninguém lhes diga nada, elas simplesmente são, elas apoiam-se mutuamente e seguem um programa perfeito, maior que elas, guardado dentro delas, um programa tão perfeito que se o deixarmos em paz, uau, funciona!
E pelo campo, avançando pelo caminho de terra, amaciada pelo cheiro quente dos estevais, vou pensando nestas coisas e em como isto tudo está tão longe de tudo. Guerra-licença menstrual-aborto-arma-útero-Johnny Depp-tiroteio-tribunal. Tudo no mesmo saco: o essencial, o acessório, o real, a ficção, a grande ilusão, a grande distracção.
Sinto-me a mulher mais alheada do mundo, sinto-me a mulher mais afortunada do mundo.
Então, saindo deste estado super natural, decido compensar a conexão com a mãe de todos, desconectando-me, e abro o velho Mac. Olho para a caixa de e-mails, e sobrando-me vagar, dou-me ao luxo de papar duas newsletters de seguida (esta e mais esta). Nas duas, uma referência a este artigo da Vox, “Trends are dead”, que naturalmente vou ler, porque graças ao Universo acredito em coincidências, mas não tanto. Basicamente o artigo diz: as tendências estão mortas, longa vida às tendências! Pulverizadas, descentradas, estilhaçadas, TikTokizadas, elas continuam aí, cada vez mais imediatas e sem substância, vazias de sentido, imagens de imagens de imagens, entranhando-se na crosta, estranhando-nos de tudo, conduzindo-nos para o que mais importa: consumir.
Alheada, mas não completamente alienada, realizo até que ponto isto é tudo xepétacular. Isto já não é bem uma alienação sossegadinha, uma anestesia passageira. Isto é uma alucinação, gigante e global, uma valente moca. Podemos comer o cogumelo, é claro, ou deixá-lo na borda do prato. Em todo caso, digo eu, é relevante olhar para ele. Em 1967, rasgando o céu para o Maio mais lindo, um senhor que muito estimo chamado Guy Debord publicou um ensaio chamado “La Societé du Spectacle”, que - pasmem! - passados estes anos todos continua a ser tendência. Nesse livro, ele punha-nos finíssimos palitos nos olhos, mas dos bons, e entrava sem medo: “Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de production s’annonce comme une immense accumulation de spectacles. Tout ce qui était directement vécu s’est éloigné dans la représentation”. No final dos anos 60, a acumulação de espetáculos estava nos media, hoje, acrescentamos-lhe a ilusão do “social media” mas é essencialmente a mesma, a disparatada dança.
L’aliénation du spectateur au profit de l’objet contemplé (qui est le résultat de sa propre activité inconsciente) s’exprime ainsi : plus il contemple, moins il vit ; plus il accepte de se reconnaître dans les images dominantes du besoin, moins il comprend sa propre existence et son propre désir. L’extériorité du spectacle par rapport à l’homme agissant apparaît en ce que ses propres gestes ne sont plus à lui, mais à un autre qui les lui représente. C’est pourquoi le spectateur ne se sent chez lui nul part, car le spectacle est partout.”
Estão a ver o eshtagrã? Scroll baby, scroll. Imagino o que Debord faria se aterrasse agora, dia 28 de Maio de 2022, nesta bolinha azul a que chamamos casa. Porque se isto não é alienação on steroids, então o que é?
Os meus filhos vivem num mundo paralelo, esse oceano imenso e imensamente desinteressante das redes sociais, onde eu ponho o pé, fingindo que estou só a verificar a temperatura da água. Faço-o várias vezes ao dia, porque é o meu trabalho, mas sobretudo porque quero, porque preciso daquela dose, daquele boostzinho de hormonas cintilantes para as minhas sinapses famintas. Eu entro no jogo. Eu faço posts com a hashtag #solaris e o algoritmo, que é todo-poderoso e cheio de cifrões, mas no fundo bem tontinho e limitado, não sabe o que vai cá dentro. Eu penso em Tarkovsky, e o Algoritmo identifica um automóvel japonês. Estudasses.
Eu entro no jogo, mas isso não significa que não esteja a ver. A nossa necessidade de consumo é impossível de satisfazer, bah oui. E quando parece que já temos todas a necessidades cobertas, cria-se logo outra, ainda mais falsa, reluzente, e devidamente acompanhada da hashtag da moda (o que permite, entre outras coisas, contabilizar quanto vale cada tendência e capitalizá-la). A mera contemplação de uma alternativa causa-nos arrepios. E neste ensandecer, até as ideias, os desejos, as causas, as vontades, se transformam em mercadorias. E assim o sujeito é objecto e o objecto é sujeito. E até a alienação se volve commodity, mais uma hashtag à deriva num mar de significantes sem significado.
De alguma maneira isso conduz-me, dando leves passinhos para trás, a um livro que ando a ler. Não é bem um livro. É uma epifania (“epifânia”, gosto tanto) em 308 páginas. Chama-se “Karl Marx’s Ecosocialism – Capital, Nature and the Unfinished Critique of Political Economy” foi escrito em 2017 por um académico japonês chamado Kohei Sato. Não sei se isto é legal mas está aqui.
Eu não percebo nada disto, eu nunca li “O Capital”, eu sou uma burguesinha silvestre, eu comprei uns Nike Blazer para regar o quintal,
Mas,
é impressão minha ou andamos todos a precisar que nos abram os olhinhos?
A tripar com o japonês, mas sobretudo com o Marx que o pariu, sublinho passagens inteiras, dobro os cantos às páginas, rabisco pontos de exclamação, inscrevo sinais positivos de perigo, pespego-lhe nas margens coraçõezinhos e coroas de Basquiat quando uma ideia me parece especialmente luminosa-imperiosa, e neste frenesim desenhado a lápis, regresso ao anfiteatro da Universidade Nova de Lisboa e olho de frente para aquela palavra monstra:
“Alienação”
Ufff, palavra Adamastor. Escarafuncho, investigo, peço socorro e lá do alto vem, tonitruante, a claridade: “Alienação é não ver o que deve ser visto”.
Ufff, bem me parecia. E começa, precisamente, na alienação em relação à Natureza. É um corte. Não sangra. Mas é um corte. Ao contrário de muitos teóricos que minimizam a ecologia no pensamento de Marx, Kohei Sato defende que Marx viu claramente a crise ambiental inscrita no modo de produção capitalista. E apontou a maneira de superar essa contradição. Sato mergulhou nos cadernos de Marx, escritos antes e depois de “O Capital”, onde Marx verteu as suas impressões sobre várias leituras no campo das ciências naturais. As boas notícias: apesar do desastre anunciado - a crise climática, o antropoceno e a extinção da humanidade, o fim do mundo como o conhecemos - a visão de Marx não é apocalíptica. Há uma possibilidade chamada “transformação social”. Como as árvores, somos nós. Ora vejam:
“Only a systematic analysis of Marx’s theory of metabolism as an integral part of his critique of political economy can convincingly demonstrate, against the critics of his ecology, how the capitalist mode of production brings about various types of ecological problems due to its insatiable desire for capital accumulation. And why radical social change on a global scale, one that consciously constructs a cooperative, non-capitalist economic structure, is indispensable if humanity is to achieve a sustainable regulation of natural and social metabolism”
Ou seja, como diz a Arundhati, noutro livrinho máximo sobre o capitalismo, “Another world is not only possible, she is on her way. On a quiet day, I can hear her breathing”. Atentem ao género: o outro mundo, o novo mundo, é Ela. Daqui de onde vejo, depois de vir para o campo, depois de comer Marx e o Japonês ao pequeno-almoço, esse abrir de olhos colectivo passa, e não há volta a dar, por restabelecer a ligação entre a humanidade e a natureza, relação essa, estão a ver, que o sistema capitalista dissolve e, mais literalmente, espezinha. Já tinha chegado a essa conclusão, mas Marx explica, em 1844 (antes de O Capital, portanto): “Communism is the positive transcendence of private property as human self-estrangement, and therefore as the real appropriation of the human essence by and for man (...) This communism, as fully developed naturalism equals humanism, and as fully developed humanism equals naturalism; it is the genuine resolution of the conflict between man and nature and between man and man”.
Romântico? Eu amo. Tragam-me Goethe que eu bebo a taça toda.
Como diz o Tim Maia, “uh uh uh que beleza | uh uh uh a Natureza”. Está lá o princípio, está lá a estrada, está lá o pó, o caminho, o deslumbre, a primordial ligação. Mesmo não fazendo as coisas de maneira perfeita (eu como carne, eu nem tenho bicicleta), é urgente regenerar essa relação, a partir de uma perspectiva de coexistência e não de superioridade, de gratidão (yá babies, são presentes o que a Natureza nos dá, e isto inclui a comidinha - “nunca colhas mais do que precisas” - e a visão do paraíso descendo até ao mar. ) em vez da extração desenfreada. Já vamos tarde, é bastante óbvio. Exaustos, galopando aceleradamente para a exaustão. Li que há pessoas que não dormem, na Ásia, por causa do calor. Regenerar é preciso, subjectivamente, colectivamente. Olhem para as papoilas: um instante basta.
Três coisas que valeram a pena
A vídeo instalação de Vhils no Maat, Prisma. No words, no words, a humanidade. É preciso mergulhar, ser minotaura no labirinto do mundo. Está até setembro.
2. Este som. Ernesto X Up, Bustle and Out. Que sí, que sí se puede.
3. Esta t-shirt da Kitchnette. Sim, eu fui patinha e comprei. Sim, é uma imagem, e neste caso vale bem as mil palavras.
E um conto
(A luta continua, e a Autobyografia também. Saltei uma postura, porque esta me pareceu mais solar, antevendo a estação que se avizinha. São sete, esta é a terceira, ei-la: A Deusa)
Duas vezes tive o rei na barriga. Duas vezes o expulsei. Utkata Konasana, a postura da Deusa, representa a energia e a ferocidade.
É preciso ser feroz para parir. Um filho, um livro, um desejo. Quando perguntei à minha mestra que postura associaria ao momento do parto, ela falou-me de vários asanas, mudras também, deu-me muitas opções, lembrou-se da Deusa.
Pudera. A Deusa é poderosa. Ela põe no mundo, mas primeiro tem cara de quem vai comer o mundo. Reparem: a Deusa está de pernas abertas, escancaradas como as páginas de um livro, uma para cada lado, os joelhos flectidos a 90 graus, na linha do calcanhar, os braços afastados formando ângulos rectos, no sentido inverso, apontando para o céu. As palmas das mãos abertas, os dedos esticados em estrela, dedos bem separados, acordados. E logo as mãos unidas, em frente do chakra do coração, os ombros descontraídos, o umbigo encolhido, na direção da coluna, o útero em tudo alinhado, vibrante e preparado para - contraindo e dilatando - enfim libertar.
Duas vezes tive o rei na barriga e duas vezes o expulsei. A palavra é forte, ninguém quer ser expulso. A menos, claro, que seja para nascer.
Da primeira, abriram-me uma fenda no baixo ventre. O primogénito, flutuando no amoroso líquido, não tinha pressa. Bom rapaz, porém algo dado à indolência, a criatura não se deu ao trabalho de dar a volta, apontando ao túnel e daí cá para fora. Deixou-se ficar, se não refestelado pelo menos sentadinho boiando naquele colo ondulante, e em posição pélvica, esperou que o tirassem dali. Não foi o que eu esperava, mas foi. Não é parindo que somos mães, nem muito menos mulheres. Quantas mães nunca pariram, quantas mulheres, tendo parido filhos que depois criaram, nunca foram mães? E quantas fêmeas, parindo ou não parindo ou deixando de parir, não são grandes e inteiras mulheres?
Semper femina, seja lá o que isso for, e é sempre muita coisa, para mim é uma evidência que a experiência de ser mãe, gerá-los e pô-los no mundo, amá-los e cuidá-los, deseducá-los, errar, errar, errar, e tentar repetir sempre os mesmos erros para não cair em antipedagógica confusão, é do melhorzinho que fiz. Ao contrário de tantas mulheres que passam por gravidezes complicadas, enfadonhas, difíceis, naqueles meses, nove e nove são dezoito, naqueles tempos eu fui santa, verdadeiramente santa. De cada vez, rebentando de gorda, sem conseguir ver os dedos dos pés, acariciando a esfera luzidia e perfeita no meu centro, eu era baleia em processo de beatificação. Depois eles nasciam, e começava outro processo. As mamas esvaziando-se, as fraldas, as noites, os dias, a irritação, a contemplação. O riozinho de leite escorrendo de lábios semiabertos, depois de mamar. Mas ali, eu ali, eu forte e poderosa, eu gerava e eu dava, à luz e ao mundo e a tudo, eu estava plena e resolvida como um ovo. Amando o filho que não vimos ainda, tendo a perfeita consciência de que assim que o pomos no mundo ele deixa de ser nosso. Amando-o ainda mais por isso.
Com o segundo, tive o que queria. Cuidado com o que desejas.
Pari, pari, sofri, sofri. Não é uma dor, são várias. Consecutivas, borrifadas ritmicamente com uns breves intervalos de alívio pelo meio. Cada vez mais curtos, os intervalos, até que empurras, empurras, respiras, e transpiras, agarras e soltas, e gritas, e sai.
O meu filho nasceu numa manhã clara, num verão macio. Na sala de partos, o Sting cantava “Every Breath You Take”, as ondas sonoras libertando-se do rádio a pilhas, soando finas. E eu, que nem gosto de polícias, mas para aqueles abro uma excepção, agradeci que o meu filho viesse assim ao mundo, do embalo do meu corpo para o embalo daquele som. A sala, o rádio, a descontracção do obstetra, o alheamento do anestesista que chegou com várias horas de atraso quando eu já tinha uma cratera aberta no meio das pernas, se era para chegar assim, mais valia não ter vindo, sempre se poupava uma deslocação e eu berrava à mesma, o maço de cigarros no bolso da frente da bata da enfermeira que limpou o meu filho e o vestiu pela primeira vez, depois de o terem pousado em cima de mim, pele sobre pele, ventre no ventre, boca no peito, quente no quente, meu amor. Tudo aquilo registei. Talvez por estar tão alerta. Omnipresente, omnipotente. Vendo tudo para a frente e para trás, passado, presente e futuro num mesmo e único instante.
Naquela altura, não conhecia ainda os benefícios do Yoga. Se os tivesse experimentado, talvez tivesse ficado de pé o tempo todo, Deusa, feroz e destemida, cuspindo palavrões como estrelas, lançando foguetes, chapinhando nas águas que se soltaram, escorrendo-me pelas pernas como um dilúvio morno depois de uma explosão.
As águas, as águas, da água vimos e para a água vamos, e nesse parto recuo ao parto que me pariu, que a minha mãe sempre me relatou como um episódio de alguma violência. Porque a minha mãe era muito nova (21 anos) e eu muito gorda (mais de 4 kg) criou-se ali a tempestade perfeita. Hoje consigo engolir e avançar, mas durante muito tempo fiquei ali, presa àquele rasgão, à força que fiz para sair, à força que a minha mãe fez, ao descompasso de tudo, aos minúsculos vasos sanguíneos que lhe rebentaram na cara de todo o esforço que fez. Trinta anos depois, quando o meu filho mais novo nasceu, eu tive a sensação que tinha feito as pazes com aquele meu momento inaugural. Porque eu queria que ele nascesse e ele queria muito nascer, porque eu fiz força, e ele fez força, o parto foi um processo colaborativo, uma ajudada minimalista, uma dança a dois, eu a empurrar para ele sair, ele a deslizar pelo misterioso canal para ser expulso, o médico cá fora, mãos em concha esperando que a cria lhe caísse nos braços. E foi mel na sopa. Na minha experiência, não é a mãe que põe o filho no mundo, ela pare e é parida também. Ela liberta-se, libertando-o.
Por isso Utkata Konasana, que simboliza a energia criativa, a vitalidade, o feroz feminino, é a postura perfeita para desfazer a tempestade perfeita. Não a fiz quando pari. Faço-a agora porque um parto é quando uma mulher quiser.
Tour de force sobre a contemporaneidade, suas armadilhas, suas exaltações - e o grande mistério que é ser mãe. Obrigado, Madalena, por mais um magnífico texto com tripas, flores e amor.