Chegou a Primavera. Queria que este fosse um texto luminoso, mas também explosivo como aquele vulcão na Islândia ou as glicínias em arco na casa da minha avó.
Já é um bocado tarde e estou demasiado cansada para isso.
Mas disse que seria por aqui, o dia de me lançar neste passeio, e aqui estou.
Passou o dia da poesia e estive todo o dia à procura de um poema, mas não parei em nenhum que me dissesse AH-HA, talvez porque o tenha procurado de mais, nas ruas, é claro, mas também nas páginas de um livro que trouxe comigo, e cujas páginas não cheguei a abrir.
Cada vez me convenço mais que não se encontra o que se procura. É preciso deixar de procurar.
No jornal leio que a poesia “não é vendável” e na minha cabeça penso que um livro é de facto um lugar impróprio para se guardar poesia, que é libertação.
(O livro de poesia tinha uma capa lilás, como as glicínias.)
O que vim aqui dizer: que esta PROMENADE que têm à frente dos olhos é um passeio e uma promessa. Um passeio pelas coisas que vou lendo e vendo e ouvindo e observando, e me apetece partilhar. Uma promessa porque as palavras se tocaram na minha cabeça, e embora não tenha uma periodicidade certa, vamos estabelecer que pelo menos um domingo por mês, damos um passeio. É um exercício para mim, e um prazer. Espero que para vocês também o seja.
Apesar da veia nómada, esta promenade está alojada nesta plataforma chamada Substack, que descobri num artigo da The New Yorker e que resolvi investigar. O princípio é simples: o escritor escreve, o leitor lê, e não são precisos intermediários. É daí que vem a palavra “media”, convém não esquecer. É aqui que acaba a palavra media. É media sem media. The medium is the message, no more. The message is the message, melhor.
Há uma modalidade aberta, em que para ler não se paga nada, e uma modalidade em que se paga uma assinatura, que vai para quem escreve, djireto, e para Substack também, lógico, porque isto é tudo muito bonito, mas o sistema é o sistema é muito sistema. E tudo, menos a poesia, é vendável.
Ainda estou em fase de testes, por isso por agora a PROMENADE é completamente aberta. E nunca será completamente fechada (isto é, haverá sempre textos para todos, sem precisar de assinatura). Por agora é isto. Estou a mandar para uma enorme lista de contactos, que gostava muito que ficassem, claro, mas sempre naquela base sã do “amigo não empata amigo”. Será uma vez por mês, no mínimo, uma vez por semana, no máximo. E tentarei que seja ao domingo, que é bom de domingar, mas não prometo.
(para variar, lancei uma palavra à Catarina Carreiras e ela fez magia: o cabeçalho e o logo desta Promenade são todos dela. Viva a Catarina!)
Três coisas que valeram a pena
O disco da quarentena da Julien Baker, do qual tenho ouvido esta música em círculo, como o meu louCão a correr atrás da cauda. Gosto como sobe/sabe, e tem a vantagem de, apesar de falar de ficção, nem ouvir a letra, bom prenúncio numa canção.
A comida da Tua Madre, um restaurante italiano alentejano, em Évora, que mostra que dentro da muralha se passam coisas incríveis. Como uns Macheroni all’Amatriciana, feitos com papada de porco preto, acompanhados de vinhos naturais vivíssimos, e um crumble divinal de saída.
O artigo sobre bicicletas do Nuno Catarino no número #1 da revista Mamute, que uma santa livreira me recomendou e que me deu grande prazer ler.
E um conto.
(em fascículos, aos bocadinhos, como prometido, uma colherada em cada edição da Promenade. Escrito há um ano. Infelizmente actual.)
NINA
O psicopresidente está na televisão e os seus olhos são escuros como balas.
Espera, são buracos. Não há olhos, não há luz, são buracos escuros e fundos.
Espera, há uma popa. Uma popa de pavão louro e solar.
Há pastores evangélicos. Cientistas embaraçados. Jornalistas perplexos.
O senhor não pode fazer isso.
Eu sou o presidente. O presidente sou eu.
Buracos escuros e fundos. Duas auréolas negras. Uma popa loura e aquela boca de bebé chorão, debruçada num beicinho viscoso, o precipício. As palavras saem e escorrem pelo precipício.
Um palhaço. Um títere. Os tiques. Histriónico. Psicopresidente, presipsico, psicodente, pepsodente.
Mas afinal de quem estamos a falar? Isso interessa pouco, porque neste momento ela tem o coração acelerado, tão acelerado que lhe sobe pelo peito, galopante, até a engasgar, como se asfixiasse por dentro, como se quisesse saltar-lhe pela boca, um sufoco repentino, uma aflição.
Acorda. Acorda, mãe.
Dedos pequeninos, doces como almofadas, a abrir-lhe as pálpebras, como quem cria espaço num livro cerrado, colado pelo tempo. O Sol a atravessar a portada da janela, passando entre os pingos da tarde.
Ela obedece, estremunhada. Era só uma sesta, breve e necessária, para se recompor do tédio. Sebastião ali especado, olhos gigantes, também ele com cara de sono, mãe já dormiste muito, mãe já dormiste tudo, o que é que vamos fazer.
Nada. Podemos pintar. Podemos fazer digitinta. Podemos ver os desenhos animados na televisão. Montar o vigésimo sétimo castelo. Destruir o vigésimo sétimo castelo. Torres e ameias e tudo. Podemos fazer gomas.
- Gomas, mãe?
Gomas como joias pedras preciosas rubis encarnados, gemas amarelas, transparentes, laranjas, brilhantes, turquesas, escarlates, azuis. E depois comemo-las.
Quando era pequenina, pensa, não se chamavam gomas. Eram gelatinas. Cobertas de açúcar cheias de promessas de cáries. O psicopresidente também é assim gelatinoso, só que em mau. Ainda bem que não reparas nessas coisas, Sebastião. Tu só queres gomas derretendo-se entre os dentes e é isso que vamos fazer. Quando era pequenina, não tinha mal não fazer nada. Era bom não ter nada para fazer. Agora já não podia mais com aquilo. Nada.
O líquido viscoso está ao lume, e enquanto mexe, para não pegar, pensa no bicho virulento peganhento que fez parar o mundo e porque raio terá sonhado com aquelas duas avantesmas, ainda por cima numa tarde tão bonita como aquela. Um monstro dois-em-um, de olhos encovados e popa radiante, um monstro sem máscara esnobando gripezinhas.
Depois, o líquido irá para dentro das formas, e nascerão dinossauros, macacos, zebras e leões. Girafas não, talvez tenham pescoços demasiado compridos, excessiva elegância para se poderem transformar em gomas. Antes, as formas iam para a praia e enchiam-se de areia, e nasciam conchas e peixes e búzios e caranguejos, e fazia bolas de Berlim molhadas, e polvilhava-as de areia seca, e depois comia-as com a mente.
- Girafas são zarafas, sabias? A palavra vem do árabe “zarafa”, que significa “encantadora” e “amigável”.
- Os árabes inventavam muitas coisas.
- Muitas.
Números. Gelosias. Astrolábios para navegar.
(a ilustração é do Júlio Dolbeth, que leu o conto todos e fez essa maravilha. No domingo continua).
Denso, autêntico, belo! Obrigado, Madalena.