#16 Política e Poesia
AVISO LEGAL: Eu tenho um crush pelo Maio de 68. É uma coisa forte. Dura desde a minha adolescência, e não melhorou com a idade. A sementinha estava lá plantada desde criança, é verdade. Sou filha de boomers, e isso, isso às vezes faz BOOM BOOM! E aí é uma festa – la boum!
Não vou chamar-lhe obsessão. Não acumulo souvenirs. Não tenho uma coleção de posters com slogans situacionistas. Mas isso é só porque me recuso a colaborar com a mercantilização de Maio. Sério. Maio é outra coisa. Maio é muita coisa. Como a alegria, Maio é uma coisa muito séria.
Por isso, quando esta semana fui ao cineteatro local ver o último filme de Wes Anderson, “The French Dispatch”, eu fui às estrelas. Não é só porque o filme junta duas coisas que contribuem muito para a minha felicidade. Uma é o cinema. Outra são as revistas (as de cólidade). É porque Maio está lá, vestido de outra coisa que não sendo a mesma coisa, não deixa de ser o que é: le joli mois de mai (mé).
O filme inspira-se na história da The New Yorker, revista imaculada, que via em pequena, provavelmente furando uma nuvem de Camel, pousada na estante do meu querido tio João. Herdei uma ou duas. Ainda antes de conseguir lê-las, ficava siderada com as capas. Depois, passei a assinar a revista. Primeiro em papel, depois em versão digital, porque os artigos da New Yorker são longos, longos e bons, e as pilhas comiam-me antes de eu ser capaz de as devorar. Enfim, já estou a divagar. O filme de Wes Anderson, o cinema, as revistas boas.
Estava um ambiente glaciar no teatro. À minha volta, os cinefilhos tiritavam: havia gorros de lã, samarras alentejanas, perneiras, chapéus de feltro, luvas de cabedal, cachecóis fofíssimos, mantas de xadrez, mantas da IKEA, havia uma estola, pelos deuses! e desconfio até que, escondidas debaixo das calças, algumas ceroulas modernitas. Não vi nenhum passa-montanhas. Teria sido belíssimo. Assim como chegar ao topo do Everest no escuro, sem medo. Eu fui de canelas à mostra e arrependi-me. Mas cerrei os dentes, que desencontrados tremiam, esfreguei as mãos uma na outra, e aguentei. Eu e todos, mais ou menos aquecidos. Isso é amor à arte. A arte é a camada que acrescentamos ao mundo, e vem transformar o mundo. Se precisamos dela para viver? Pois claro que não. Um tecto, um chão, comidinha nem que seja para enganar o estômago. E amor, seja qual for a forma que nos calhe. Mas a arte! AHrte!
(Se precisamos dela para viver? Pois claro que sim. Para mim, é como o DJ da noite passada. Salva vidas.)
Como não consigo descrever melhor, fui buscar estas palavras de John Berger:
A arte é uma expressão da nossa sensação de que o que existe é insuficiente - e de que não somos obrigados a aceitá-lo com gratidão.
E mais esta, de Lawrence Weiner, “infelizmente defunto”, como diria um escritor que muito prezo:
As artists, we do things that add something into the world. Once it’s added, the world is not the same as it was before.
Ai que isto hoje está a ir para todos os lados. Concentra-te, melher. Ao que íamos. O filme de Wes Anderson, vagamente inspirado na The New Yorker. É um lindo filme.
Como todos os filmes de Anderson, está obsessivamente desenhado, e filmado e dirigido em concordância. Mas como quase todos os filmes de Anderson, para quem gosta, essa obsessão quase maníaca com o pormenor é um deleite. A sequência de abertura, por exemplo, coloca-nos logo em sentido. Um garçon dispõe metodicamente numa bandeja uma série de objetos, copos, bebidas, maços de cigarros, garrafas, algo que se coma, enfim, chique a valer, e acompanhamo-lo enquanto leva as vitualhas escadas acima, ao gabinete do editor da revista The French Dispatch, com sede na cidade ficcionada de Ennui-sur-Blasé (derreti na cadeira, e estava fria, acreditem).
E nessa escalada (a redação fica no topo de um edifício meio decrépito, e por isso mesmo, cheio de pinta), o que vemos? Vemos Tati, pois claro. Esta opening scene é uma homenagem aos planos encantatórios de Mon Oncle (espécie de estático movimento), do meu crush des crushes Jacques Tati.
Bolas, Wes, assim não vale. Uma mulher prepara-se. Uma mulher não sabe, mas imagina ao que vai. Uma mulher vai ao tapete e acabou-se. A homenagem ao grande Tatischeff não se esgota aí. Inclinado e sem palavras, sem largar o seu cachimbo, ele espreita pelo filme em muitas outras ocasiões. Wes Anderson só pode ser um devoto de Tati. Eu particularmente, estou-lhe muito agradecida. Tati está nos cães que deambulam, numa inocência intermitente, pela velha cidade (em contraponto ao delírio do mundo moderno); mas também está nas bicicletas, nos deliciosos transeuntes imersos na sua vidinha, indiferentes a tudo, até ao cinema, e no olhar estupefacto, misto de ternura, escárnio e incompreensão, sobre os gendarmes e outros agentes de soit-disante autoridade (já lá vamos).
Mas no filme de Anderson, Tati está sobretudo no amor profundo pelo cinema, no abandono absoluto a esta forma de arte, que, nos dois cineastas, é simultaneamente um domínio absoluto desta forma de arte. Abandono/domínio: é isto que baralha, e atrai, nos filmes de Anderson e de Tati, exímios em tirar-nos o tapete debaixo dos pés quando tudo está loucamente controlado, quando tudo parece espartilhado, perfeito de mais. Nos seus filmes híper conduzidos, explode a liberdade, o insólito, o cómico, o inesperado. Temos mais consciência de tudo isso precisamente porque os vemos irromper no avesso do improviso: um mundo filmado, construído, onde tudo, da paleta cromática, ao enquadramento, à montagem, ao som, a cada gesto e atropelo nos diálogos está pensado (será por acaso que, no outro lado do Atlântico, a cidade irmã de Ennui-sur-Blasé, se chama Liberty?), e o acaso, tão belo, parece suspenso sem de facto estar.
A Wes Anderson, a démarche corre-lhe particularmente bem. É um autor respeitado pela crítica, com boa imprensa, e farta bilheteira, ou pelo menos a suficiente para continuar a filmar o que lhe apetece sem se arruinar. Com Tati não foi bem assim. É conhecida a história de Playtime, sorvedouro de dinheiro e emblema de resiliência/resistência, para o qual se construiu uma cidade inteira e onde Tati pôs tudo o que tinha e o que não tinha.
Como outros filmes de Wes Anderson, “The French Dispatch” está compartimentado em episódios mais ou menos autónomos, mas ligados entre si. Neste caso, o filme está organizado como as secções de uma revista. Cada história que vemos filmada é uma história (ou seja, uma story) que leríamos nas páginas da revista, se a tivéssemos na mão. Mas não é só isso. Porque o cinema é o cinema, e não é uma revista. E aí Wes Anderson faz o seu filme, que valeria por si, mas que vale ainda mais porque está carregadinho de muitos filmes e referências que nele vibram, e se expandem através da imaginação do realizador. Explícitas, e nem por isso menos surpreendentes, são as histórias que se hiperligam a dois movimentos PAM! do século XX: o expressionismo abstracto e o Maio de 68. Debaixo da batuta de Wes, Ennui-sur-Blasé em tempo incerto é Nova Iorque nos anos 50, e Paris no final dos anos 60. E é muito mais que isso. Porque Wes Anderson apropria-se da realidade (?) histórica e dá-lhe a volta, acrescenta-lhe a tal camada de que alguns precisam para viver. Fá-lo com um humor finíssimo. Uma imaginação prodigiosa. E assim a realidade ganha uma outra densidade, sem perder leveza, e desdobra-se com a perfeição de um fractal.
Wes Anderson é um auteur que papou muito cinema. Nós olhamos, olhamos, abrimos caixas dentro de caixas dentro de caixas (os seus filmes podiam ser Matrioskas quadradinhas) e apanhamos o que podemos. É muito divertido. Cada história começa com uma descrição do enredo num ritmo meio frenético, narrada num inglês eloquente, que até o espectador mais atento tem dificuldade em acompanhar. Mas depois a fita rola, e rola, e começam a cair-nos as fichas. E tudo encaixa. Tentando acompanhar a velocidade de tudo, nem por isso perdemos de vista os maravilhosos pormenores. Desde logo nos truques clássicos de Wes (a simetria, os planos picados, os quase travellings abruptamente interrompidos, a animação) mas sobretudo nas referências. Está lá Tati, já vimos. Mas também Orson Welles (o meu amigo ZM viu uma citação bastante literal do Rosebud, eu só vi os flocos de neve a cair a preto e branco e fez-me clique), mas também Renoir (não sei bem onde, mas está lá) e a Nouvelle Vague (planos laterais de homens lendo dentro de banheiras, planos frontais de “cama+ mulher + homem + livro,” ou máquina de escrever), ou seja, está lá Godard, e Piccoli e Belmondo, e uma atriz que é a versão Millenial de Anna Karina. Está lá tanta coisa que estamos a ver, mas o mais excitante é imaginar, ou realizar, tudo o que não estamos a ver, por muitos filmes que nos tenham enfeitiçado. Depois, está lá um naipe de atores fabulosos, fabulosos, quase todos da casa, a começar por Bill Murray, que só melhora com a idade, Tilda Swinton, Benicio Del Toro, a bela Léa Deyroux, Edward Norton, precedido da sua voz, a incorruptível Frances McDormand, e Jeffrey Wright, numa interpretação gloriosa, comovente, inspirada em James Baldwin. Dá para perceber.
E está lá o Maio de 68. Os filhos da burguesia a parir a utopia. Os comités de estudantes e até uma espécie líder menos rouge mas com um nome igualmente exótico. As divisões da esquerda. As barricadas, e atrás delas, uma partida de xadrez (entre os estudantes e o presidente da câmara que finge tentar sufocar a revolta civilizadamente, até que manda soltar o gás lacrimogéneo e as balas de borracha), partida essa que só pode ser uma citação do filme Entr’acte (1924), aproximando dois irmãos separados à nascença: o Dadaísmo do espírito de Maio. A música, a fumarada, a efervescência, as saias curtas e as golas altas pretas. Só não estão lá os sindicalistas, que, diz quem sabe, estragaram a festa. Podia ter sido mais político? Podia. Mas não seria um filme de Wes Anderson. O realizador não perdeu o essencial, e colocou a história de Maio (no filme é Março) na secção de Política/Poesia da revista imaginada. É isso mesmo. À bout de souffle, é preciso continuar a correr. Como na mais clara palavra, que cristaliza toda aquela bela Primavera: Vite!.
Três coisas que valeram a pena
1. O que Virgil Abloh nos deixou. Virgil Abloh, que um carcinoma marado derrubou esta semana aos 41 anos, era um fora de série. O primeiro negro (eu ia escrever outra coisa, posso?), o primeiro preto (obrigada), a assumir a direcção artística da Louis Vuitton era designer, artista, DJ, skater, thinker, maker, para além de arquitecto de formação. Nasceu em Rockford, Illinois, filho de emigrantes do Gana: o pai trabalhava numa empresa de pinturas, a mãe era costureira. Virgil Abloh era aquilo a que se chama um first-generation American. E era uma estrela, muito negra e muito alta e muito brilhante. Eu tenho um crush pelo Virgil Abloh. Eu tenho vários crushes, já se viu, mas este é poderoso, e não morre com a morte de Abloh. É péssimo estar a fazer-se obituários falando da ligação que nos unia ao morto ou morta. É comum na imprensa portuguesa. É muito pequenino. Eu estou à vontade, porque isto não é um obituário e eu nunca conheci Virgil Abloh. Mas não resisto, porque uma vez tive a fantasia de estar perto, muito perto dele. E foi um instante muito bonito da minha vida. Estava em Milão, numa noite no Bar Basso durante a semana do design. Toda uma loucura pré-pandémica. O Virgil Abloh também estava em Milão, onde era júri de um prémio qualquer. Nessa cerimónia, estava um amigo meu. E nós esperávamos esse amigo no bar, onde estava este Milão e o outro. Ligámos-lhe para saber quando vinha. Se demorava. Ele disse que estava a caminho, e penduradas no telefone uma data de vozes ergueram-se em coro: “Traz o Virgil! Traz o Virgil!”. Não veio.
O Virgil era um senhor. Como deus, conseguia estar em vários sítios ao mesmo tempo. A desenhar ténis, a encadear faixas em sets ecléticos, a conceber desfiles, a imaginar cadeiras, a fazer uma capa de disco para o seu buddy Kanye. Até conseguia estar, sem fazer nada por isso, na cabeça de várias mulheres que nunca o tinham visto mais preto. A estilhaçar fronteiras, a agregar vontades, a fazer ligações inéditas, a juntar 1 + 1 são 3, a espalhar o bem. Naquele dia, ele também esteve no Bar Basso, no meio de nós. E continua. Para quem quiser ler um retrato muito lindo do Virgil Abloh, recomendo este artigo da The New Yorker, que nunca mais esqueci. Viva Virgil!
2. O boicote à Spotify. Então o inominável CEO da plataforma de streaming de música, Spotify, anunciou esta semana, todo pimpão, que tinha investido 100 milhões de dólares numa empresa interessada em desenvolver Inteligência Artificial para a defesa. Ou seja, através dos utilizadores da Spotify, os músicos patrocinam os militares. Algumas vozes (pelo que vi, nem tantas) insurgiram-se imediatamente, e saíram da plataforma. É importante que os artistas saltem fora, mas mais importante ainda é que nós, que somos muitos mais que os artistas (mais que as mães, portanto), saltemos também. Eu já cancelei a minha assinatura. Aí em baixo, está um print screen da mensagem de despedida do Spotify. Que ternura, não sei se aguento. E eu a achar que era cringe.
A partir de agora, se por descuido voltar a aceder à Spotify, vou cruzar-me de novo com aquela vozinha inenarrável, cuidadosamente seleccionada para nos empurrar para a versão premium do serviço. Nisso eles são munta bons. A voz é de estalo. Pagamos para não a ouvir. Mas eu sou pacifista, salvo raras excepções. A arte pode até ser revolucionária, a arte pode até ser uma forma de guerra, só que não é esta. Art is not war, is not war is not war. Os artistas estão fartos de ser explorados, e nós também. Neste sistema, escolher o que consumimos e como consumimos, é das coisas mais óbvias que podemos fazer. Tocar-lhes onde mais lhes dói. Se basta? Claro que não. Devemos ser mais radicais? Perguntem aos vossos pais. Mas uma coisa é certa: não precisamos que uns quantos façam a coisa perfeitíssimamente (por exemplo, deixar de consumir carne de vaca, aderir à extinção das salamandras libertadoras de maléficos gases, mudar-se para um qualquer Lago Walden e enveredar pelo caminho da autossuficiência, privando-se de tantos prazeres mundanos). Precisamos de muitos a fazer a coisa como podem, atabalhoadamente até, mas fazendo. Marimbar na Spotify pode ser um bom princípio. É recusar-nos a que nos dêem música e fazer, literalmente, a parte que nos toca.
3. O número de Outono da revista Where the Leaves Fall. A Where the Leaves Fall (WTLF) é uma revista sobre natureza, sustentabilidade, biodiversidade (aliás, diversidade em geral) e outros temas que me interessam cada vez mais, como maneiras alternativas de produzirmos alimentos (agroecologia) e de os consumirmos (combate ao desperdício alimentar, entre outras coisas). A vida simples. Estes temas não são brincadeira. Na WTLF são tratados com simplicidade, sem ceder ao sensacionalismo apocalíptico, à militância histérica ou à leviandade. A sustentabilidade é complicada? É. Mas é preciso começar por algum lado. Aqui é bom. A revista é feita por uma data de pessoas espalhadas pelo mundo, fotógrafos e jornalistas, ou melhor ainda, testemunhos, que contactam diretamente com as realidades que retratam ou que delas emergem, directo. Há muita coisa a acontecer. Depois de ler a WTLF acreditamos que até pode estar quase tudo perdido, mas não está tudo perdido. Há por aí muito humano de pestana aberta. Unamo-nos. Aprendamos com quem sabe. Gostei de muitas coisas neste número. Gostei muito deste parágrafo, que não me canso de reler. Hoje fico só com esta frase, contextualizada ou descontextualizada, não me interessa: Revolution starts in the land.
E um conto
(Porque ontem o Sol cobriu a Lua, porque esta Promenade está uma seca para cinéfilos, aqui fica um texto curtinho que escrevi há tempos.)
Na noite do eclipse, as palmeiras agitavam-se como belas adormecidas, negras contra a noite roxa. Era preciso dar um mergulho na escuridão.
Então entra no cinema, cheio de cadeiras vazias, e ocupa um lugar mesmo ao centro, talvez para compensar o facto de ser algo dada a extremos.
No umbigo do mundo imaginado, vê a verdade desenrolar-se como uma fita de acrobata.
Ah, saborosa solidão!
Luzes e sombras projectam-se na pele transparente, e todos os sonhos ficam mais claros. O cinema, que é para ser visto, está cheio de fantasmas, espantos e assombrações.
A fita acaba. Acabou-se a fita.
Sai para a rua e o frio espanta-lhe o espírito. É um ponto em movimento. Cabeleira prateada a cruzar a noite como um cometa desvairado, perdendo luz. Não é o fim do mundo, não. É o fim do dia ou um novo dia. Vê um homem encostado à parede, tranquilo, as costas coladas aos cartazes sobrepostos. Tu és tudo o que nunca sonhei, diz-lhe ao ouvido. Depois a Lua tapa o Sol e a mulher desaparece.