#25 O regresso
Um ninho
E de repente, o Outono. Galopei setembro adentro, numa pressa contrariada, como se me empurrasse um vento morno, indeciso, e ainda assim tivesse de avançar. Passou-me ao lado o Equinócio, e dizem até que lá em cima se acabaram as retrogradações planetárias, esse empata-f*** cósmico a que algumas prestamos atenção. Nem dei por elas. Só que olhando lá para cima, realizo muitas coisas. De dia, o espanto maior deste céu do Alentejo, precisamente nesta altura do ano. Nem vou tentar descrever, é claro – é toda a claridade– não chego lá. De noite, a nossa pequenez brilhando em cada estrela.
Um espaço – mesmo o espaço infinito, mesmo o teu espaço – não é um lugar. É preciso fazê-lo, nutri-lo, mantê-lo vivo. É preciso tecê-lo, ocupá-lo.
Eu tentei enfiar a cabeça no deserto, assobiar para o lado como um passarinho despreocupado, e até não escrever sobre isto, mas é impossível não escrever sobre isto. Setembro é o mês dos regressos e eu volto para lugar nenhum. Não é drama, é a vida.
Sou oficialmente uma empty-nester. Com os dois brotos a estudar em Lisboa, diz-me quem me quer bem, cheio de confiança: “É um novo capítulo que se abre na tua vida”. Faço birrinha, não estou assim tão curiosa. Quero dizer, tenho um monte de livros para ler cá em casa, mais do que consigo. Se quisesse um novo capítulo na minha vida, ia à estante e abria-o, esse livro. Escrevia-o até, apesar da secura, deste ócio sem sal.
Mãe desasada, reflito sobre isto.
Claro que mesmo um ninho vazio pode ser belo. A delícia do “finalmente juntos”, quando as crias voltam a casa; a saborosíssima liberdade de não ter de preparar duas refeições diárias (vorazes, estes rapazes. Ainda ontem: um salteado minimalista ao som de John Coltrane, só para mim. So what?); a leveza do cesto da roupa suja, subitamente civilizado; esta casa, ce petit chaos qui est le mien, que, sem eu querer, se mostra como nunca a vi.
As paredes são bonitas. Não chateiam. O tecto, sobretudo, tijolo de burro, feito há não sei quantos anos, tão bonito. Mas não se conversa com as paredes. Nem são os tectos profundos como o mar.
Nem a presença de Matcha, o LouCão, me serve de consolo. É curto. Ele não ladra, eu também não. Ele segue-me, feito sombra. Olha para mim com aquela devoção que não se explica. Também anda cabisbaixo, o bicho.
Eu e este cão, guardamo-nos um ao outro. Não sou dona dele. Nunca fui e agora menos. Somos amparos silenciosos um do outro, só isso. Ele seguindo-me, abrindo as portas com a cabeça, pousando o focinho nas minhas pernas, eu fazendo de conta que o ignoro, ainda procurando o som dos seus passos no escuro, observando a sua respiração enquanto dorme, nutrindo-me daquilo que brevemente lhe vou dando (água, ração, paté e festinha ocasional).
Outros ninhos
Um espaço não é um lugar. Um espaço nem sempre é uma casa. Até aquela, muito engraçada, com que flipava positivamente na minha infância, imaginando como se podia manter de pé. É nela que penso: era uma casa sem espaço. Transparente. Sem arestas. Seria mais fácil?
Estive hesitando se ia ou não a Lisboa, para me juntar à manif pelo direito à habitação. Acabei por ficar em casa. Estou feita uma activista de sofá? Talvez. Ir a uma manif é ser activista? Não sei. Não era o momento para mim, e é preciso respeitar o momento.
O que fiz por estes dias foi ler a proposta do governo, e pasmar. Cheia de números, e percentagens para cima e para baixo, e até uma coisa que a mim me cheira a esmola, todo o pacote convenientemente artilhado de supostos “incentivos fiscais”. Transformação? Zero. É preciso louvar-lhe, ao menos, a coerência: tratando-se de imóveis e imobiliário (que não é o mesmo que habitação), cultive-se a imobilidade, pues. Não consegui perceber em que é que o “pacote” ia resolver o problema, menos ainda contribuir para o bem comum. Isto é super-ingénuo? Talvez. Ajudem-me.
O que acontece é isto: em Portugal, depois de quase meio século de democracia, ainda andamos a lutar por direitos básicos, que nem me interessa se estão ou não consagrados na Constituição, porque são fundamentais, fundacionais, humanos, de todos, tão determinantes e cristalinos quanto a liberdade, a saúde pública e a educação. A esquerda diz: são direitos inalienáveis. Devíamos dizer “ inegociáveis”, e talvez assim percebessem.
A habitação, ou a falta dela, não é só um problema dos estudantes, da juventude, dos divorciados ou dos solteiros, dos brasileiros ou dos africanos ou dos ciganos que, haja o que houver, estão sempre fundamentalmente lixados (tinha outra palavra, poupo-vos a aliteração). É uma questão de lógica, ou falta dela. De sistema, de estrutura, de intersecção.
E é por isso que tem sentido que uma manif pelo direito à habitação em Portugal, seja também sobre o planeta. São duas escalas, a casa é a mesma. Porque a lógica que permite que as pessoas fiquem sem casa ou não encontrem casa que possam pagar com o seu trabalho (enquanto meio mundo dorme descansado) é a mesma que permite este deboche ambiental global (enquanto meio mundo dorme descansado). A mesma lógica que leva a que quem menos contribui para o desastre ambiental seja quem mais sofre as consequências da emergência climática.
Este Verão, li o livro “Not too Late”, que basicamente defende que feitos os estragos, não é tarde demais para salvarmos o planeta. O livro insiste na diferença entre optimismo e esperança. É impossível estarmos optimistas, não há dúvida, mas podemos ter esperança, se estivermos juntos nisto. Apesar da naiveté de alguns ensaios, o livro está cheio de exemplos belíssimos da forma como por todo o mundo, as comunidades e colectivos fazem a diferença na defesa e regeneração dos lugares onde vivem, nas suas vidas. Que conseguem coisas incríveis.
Eu vendi a minha casa de Lisboa e vim para o Alentejo e agora vivo num casarão que até podia alugar se quisesse (e se calhar devia). Vim porque quis, mas sobretudo porque pude escolher, porque tive essa enorme liberdade. Não devia ser enorme. Devia ser só liberdade. Minha, tua, de quem a apanhar. Não me parece que a tenha conquistado. Tive-a. Nasci nela.
Mas é preciso reconquistá-la todos os dias. Ampliá-la. Engrandecê-la. De outra forma como podemos dormir descansados? Enquanto a maioria das pessoas não puder viver onde lhe apetecer, trabalhar o que quiser, viver a vida que imaginou, será um fracasso. Eu ia escrever: “enquanto todas as pessoas”, devia ser isso.
Um espaço não é um lugar. É preciso fazê-lo. Cocriá-lo. Ligá-lo. Cá dentro, na minha casa esvaziada, lá fora, nas casas que precisamos para viver. Não foi com medo que se fez a Malagueira. E já lá vão quase 50 anos, também.
Três coisas que valeram a pena
1. Quem te ensinou? – Ninguém. Que livro lindo, que viagem. Descobri-o no Público e encomendei-o no mesmo dia. Flashada ao final dos anos 70. Estava ali, com as devidas distâncias, a minha infância. Entre os 3 e os 9 anos (1978-1984) eu andei na melhor escola do mundo. Chamava-se A Torre. Ainda se chama. O meu primo mais velho, que também lá andou, diz que nunca soubemos fazer contas de dividir à conta da Torre. Há coisas piores. Um dia escrevo sobre a Torre (que era, e acho que ainda é, uma cooperativa). Naquela escola (que era primeiro uma casa), como no trabalho da professora de artes Elvira Leite com os miúdos do Bairro da Sé, documentado neste livro, aprendia-se em liberdade. Este livro, com fotografias lindíssimas tiradas por Elvira Leite, e o relato da sua experiência com estes miúdos, naqueles dias a seguir à revolução, é uma delícia. Se puderem, vejam. Se puderem, leiam. Nem de propósito, este projeto começou em 1976, logo a seguir à extinção do SAAL. É preciso falar sobre casas. A poesia está na rua.
2. Campeonato do Mundo de Râguebi: No momento em que escrevo, Portugal ainda não jogou contra a Austrália. É um pormenor. A parte boa de sofrer pelos Lobos é que não interessa o resultado, já fizeram tanto neste campeonato. Em cada ensaio, uma vitória.
Não sei bem de onde vem este amor pelo râguebi. Não percebo nada do jogo. As regras estão sempre a mudar. Parece que nem os jogadores sabem as regras todas. Mas o árbitro é rei, e até isso, estranhamente, me parece admirável.
É possível que esta devoção comece bem lá atrás. Não é um capricho, vem de longe. Lembro-me do meu pai falar de râguebi, do nosso amigo Chichorro falar de râguebi, até de eu mesma jogar râguebi, vagamente, na escola em Saint-Germain, de ver jogos na televisão de râguebi com o meu padrasto. Mas nenhuma destas incursões justifica o entusiasmo que sinto agora. Há coisas que não têm explicação, mas vou tentar. Começo pelo óbvio: “Rugby is a beastly game played by gentlemen; soccer is a gentlemen’s game played by beasts” citação mil vezes repetida de um jornalista americano que exclui a possibilidade, mais que provável, de haver senhores que são bestas, e bestas que são senhores.
No essencial, contudo, está bem observado.
Mas para além de ser bestial, o que é que o râguebi tem? Bom, o râguebi é poesia. Mais uma vez, no sentido grego de poeisis, de “criar”, quero dizer. Noto que os senhores que fazem os comentários na televisão devem estar de acordo comigo. Poetas. Eles dizem “beijar a linha”, quando um jogador se aproxima perigosamente da linha de ensaio, e não chega a marcar, e “escapar à pele” quando um jogador avança, aéreo e no limite, escapando à placagem poderosa do adversário. Eles comparam, todos airosos, um jogador de 130 kilos a uma “libelinha”, e está tudo bem, porque é mesmo assim, eles não andam, não correm, nem sequer flutuam, eles voam, os gentlemen, levitam!
No râguebi há imensas regras, e são fortíssimas, mas há imensas possibilidades também. Logo, criatividade. Várias formas de marcar, pontos e penalidades, imensas escolhas, caminhos, sempre à procura de espaços. É óbvio que haverá muito treino, muita táctica, mas o râguebi é a certeza de que o inesperado acaba sempre por explodir, para nos salvar. Eu acredito que muito do que se passa esteja estudadíssimo, ensaiadíssimo, mas não é essa a impressão que temos quando vemos de fora.
Râguebi é colectivo, é resiliência, mas também é rasgo de génio e erupção. Eu vejo um jogo, e depois outro, e espanto-me com o meu próprio espanto. Como é que um desporto cheio de paragens, de embates, de interrupções, em que se avança centímetro a centímetro da maneira mais difícil e contra-natura (passando a bola para trás, se jogado à mão, como é mais bonito) pode despertar tanta paixão? Precisamente por isso: é o contraste entre a progressão lenta e as explosões súbitas, entre a força e a agilidade, a pausa a velocidade, o todo e as partes, que prende. Até faz faísca. Vejo ali a vida, o movimento das coisas: às vezes é preciso andar para trás para ir para a frente, desviar-se dos pedregulhos, mudar a trajetória num segundo, saltar, encolher-se, olhar de frente, olhar o outro, voar. Sem os outros, não somos nada.
3. Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. Um filme tão bonito, que vi aqui no Cineclube de regresso depois da pausa de Verão. (Sempre há regresso, afinal.) No filme, a história pessoal de Kleber sobrepõe-se, e é interceptada, pela história do seu bairro (Setúbal), da sua cidade (o Recife), e do seu país ( o Brasil). Depois de ver o filme, um palimpsesto imenso, amoroso, envolvente, perguntamo-nos onde começa a vida e acaba o cinema, se serão tão nítidas as diferenças.
Saímos do cinema e começa a vida, diz Kleber, mas eu saio da sala com a sensação de sobreimpressão. É um documentário, é autobiográfico, é mais que isso. É como se no negativo estivessem fragmentos da vida de Kleber, dos filmes de Kleber, e estivesse também aquela cidade e as suas mutações. Mais que sobrepostos, sobreimpressos.
“A ficção é o melhor documentário” diz o narrador em off (Kleber) que olha para o seu filme de dentro, de fora. É esse duplo olhar que é mágico. Ele posiciona-se simultaneamente no interior e no exterior da história que narra, da imagem, ele filma ou escolhe a imagem e olha para ela (como quem olha para um quadro, ou um fotograma,) e comenta-a, criando puns visuais deliciosos, com palavras certas, e humor fino. Ao longo do filme, que começa na casa de Kleber (a casa da mãe, historiadora, também ela recompondo o passado, até a partir da oralidade, a casa plateau) e deambula por três cinemas da cidade, o cineasta entretém-se a puxar linhas que vão do cinema para a vida, da sua história pessoal para a história colectiva, dos seus filmes para os filmes dos outros, sempre de humano para humano.
No título do filme, e por dentro dele, estão os fantasmas que irrompem nas imagens, reais ou imaginados (é preciso ver, é preciso ver) mas também aqueles - anónimos, famosos - que Kleber convoca (nomeia) bastando dizer o seu nome para que entrem no filme, participem da grande ilusão, se façam novos. É como se se abrisse um novo “fora de campo”, um fora de campo inaugural, todo habitado por fantasmas. O cinema é sempre uma presença-ausência. Que bonito.
E um conto
Uma frase, que já vai longo este passeio. E não é minha. Fui à pesca ao Instagram. Não faço ideia se a frase é uma invenção, obra da temível AI, ou verdadeiramente saiu da pena de Naguib Mahfouz, escritor egípcio que ganhou o Nobel em 1988, e de quem nunca li nada. Não faço ideia se será um fake, mas para mim teve sentido. Imagino-a escrita em árabe. Arabesca, talvez seja ainda mais a casa que procuramos.
Home is not where you were born. Home is where all your attempts to escape cease.
Naguib Mahfouz